A Ignorância Sábia de Sócrates – Uma Crítica Pressuposicional
Introdução
A história da filosofia ocidental costuma começar com uma tríade quase sacrossanta: Sócrates, Platão e Aristóteles. Entre esses três, Sócrates é frequentemente retratado como o mártir da razão, o homem que “nada sabia” e, por isso mesmo, era o mais sábio. Elevado por Platão à condição de ideal filosófico, Sócrates representa, na mente de muitos, o modelo do questionador intransigente, da ética racional e do humanismo pré-cristão. Mas será mesmo que sua filosofia é digna de tal reverência? Será que sua “sabedoria ignorante” não passa de um reconhecimento sofisticado de sua completa cegueira espiritual? E, mais ainda, será que um homem que desprezava a revelação divina em favor da razão dialética poderia ser a fundação de qualquer conhecimento verdadeiro?
Neste capítulo, apresentaremos a filosofia de Sócrates conforme testemunhada nas obras de Platão e Xenofonte, analisando suas alegadas virtudes morais, sua epistemologia negativa e sua busca por definições essenciais. Em seguida, confrontaremos sua cosmovisão à luz da revelação bíblica, utilizando os princípios da apologética pressuposicional desenvolvidos por Cornelius Van Til, Gordon Clark e Vincent Cheung. Além disso, recorreremos a João Calvino, que não apenas considerou Sócrates o melhor dos filósofos pagãos, como também denunciou seu fracasso em se submeter à revelação de Deus. Por fim, Carl F. Henry será citado em sua crítica à insuficiência da razão humana apartada da revelação proposicional.
I. Sócrates em Platão e Xenofonte: Um Perfil do Filósofo
A imagem de Sócrates que nos chega pela pena de Platão é, no mínimo, ambígua. Nos diálogos iniciais — como o Eutífron, Apologia, Críton e Fédon — temos o Sócrates histórico: um homem que se dizia guiado por um “daimonion” (uma espécie de voz interior) e que alegava nada saber, embora estivesse em missão divina para despertar a sabedoria nos outros. Já nos diálogos médios e tardios, Platão projeta sobre Sócrates ideias suas, como a teoria das Formas e a epistemologia racionalista.
Xenofonte, por outro lado, apresenta um Sócrates mais moralista e prático, focado em piedade e virtude cívica. Na obra Memoráveis, vemos um Sócrates que respeita os deuses da pólis, cultua-os com reverência e aconselha a obediência às leis. Essa versão o aproxima mais da sabedoria convencional do que do revolucionário que Platão imaginou.
Ambas as tradições, no entanto, convergem em alguns pontos:
• Sócrates busca definições universais;
• Rejeita o relativismo sofista;
• Valoriza a alma mais do que o corpo;
• Crê que a ignorância é a origem do mal;
• Defende que o conhecimento leva à virtude.
No entanto, como veremos, essa epistemologia moral racionalista não apenas é internamente contraditória como é teologicamente suicida.
II. O Dilema de Eutífron: Moralidade e a Autonomia da Razão
Um dos momentos mais citados da filosofia socrática é o “Dilema de Eutífron”, encontrado no diálogo homônimo. Sócrates pergunta: “O que é piedade?” E, ao ser respondido que piedade é o que agrada aos deuses, ele replica: “Os deuses discordam entre si. Logo, o mesmo ato pode ser piedoso e ímpio ao mesmo tempo.” Quando Eutífron tenta refinar a definição, Sócrates formula o dilema clássico: “É o piedoso amado pelos deuses porque é piedoso, ou é piedoso porque é amado pelos deuses?”
João Calvino, em sua Institutas, confronta essa concepção socrática, afirmando que “a vontade de Deus é a regra suprema de justiça, e tudo o que ele quiser, justamente porque o quer, deve ser considerado justo” (Inst. III.23.2). Calvino rejeita a ideia de uma moralidade acima de Deus — algo implícito na primeira parte do dilema socrático. O reformador reconhece em Sócrates uma tentativa de definir a ética por meios autônomos, algo que, em última instância, leva à idolatria da razão.
Gordon Clark, em Três Tipos de Filosofia Religiosa, denuncia esse tipo de pensamento como uma forma de racionalismo pagão que nunca alcança a verdade porque recusa a premissa básica do conhecimento: a revelação proposicional. Segundo Clark, “Sócrates nunca chegou a uma definição de justiça ou piedade que fosse válida em termos lógicos, muito menos verdadeiras em termos teológicos. Sua dialética é um movimento circular de ignorância refinada.”
III. A Ignorância como Virtude: O Antievangelho Socrático
No coração da filosofia socrática está a confissão paradoxal: “Só sei que nada sei.” Esse tipo de sabedoria negativa pode soar humilde, mas na verdade é um ato de orgulho epistemológico. Sócrates rejeita a revelação divina, confia em seu próprio raciocínio, e quando este falha, proclama sua ignorância como virtude.
Vincent Cheung, em seu The Author of Sin, afirma que “o ceticismo, mesmo refinado como o de Sócrates, não é humildade intelectual, mas hostilidade contra a verdade.” Ele continua: “A humildade verdadeira se prostra diante da revelação divina e admite que não temos nada a ensinar a Deus, apenas a aprender dele.” Para Cheung, o socratismo é apenas mais um ídolo da mente humana: um substituto para o Verbo eterno que se fez carne.
Carl F. Henry, em God, Revelation and Authority, argumenta que “o conhecimento humano só pode ser confiável se for derivado da auto-revelação de Deus, e não da auto-análise do homem.” O projeto socrático falha porque se recusa a começar pela Palavra de Deus. A razão não redimida é incapaz de conhecer o bem, pois está em inimizade com Deus (Romanos 8:7).
IV. A Religião Natural de Sócrates: Idolatria Filosófica
Apesar de sua insistência na moralidade e na piedade, Sócrates nunca escapou do paganismo. Seu “daimonion” era uma voz mística, não identificada com o Deus verdadeiro. Sua submissão formal aos deuses da cidade, embora questionada por Platão, é exaltada por Xenofonte como exemplo de reverência. No entanto, como declara Calvino, “o coração do homem é uma fábrica de ídolos” (Inst. I.11.8). A religião natural de Sócrates é a tentativa clássica de construir um altar ao “deus desconhecido” (Atos 17:23) sem admitir sua dependência do Deus que se revelou.
Gordon Clark escreve em De Tales a Dewey: “A religiosidade de Sócrates, desprovida de revelação, é como um navio sem leme. Pode parecer nobre por fora, mas está à deriva epistemológica.” Para Clark, a única fé racional é aquela que começa com proposições reveladas. A tentativa de descobrir o divino através da introspecção ou especulação é o pecado do Éden reciclado: “sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3:5).
V. Conclusão: Sócrates, o Melhor dos Filósofos Mortos
João Calvino reconheceu que “Sócrates foi o mais sóbrio e sensato de todos os filósofos, mas ainda assim não chegou ao conhecimento da verdade” (Inst. II.2.15). Isso porque, como todos os pagãos, ele “detém a verdade pela injustiça” (Romanos 1:18). Sua tentativa de alcançar o conhecimento por meio da razão pura não apenas falhou, mas agravou sua culpa, pois ele conhecia “o Deus desconhecido” e recusou adorá-lo como Deus.
Sócrates, como figura histórica e filosófica, pode ser respeitado como um homem de grande intelecto e coragem. Mas da perspectiva cristã pressuposicional, ele é o exemplo perfeito da “sabedoria do mundo” que “é loucura diante de Deus” (1 Coríntios 3:19). Seu legado deve ser reconhecido não como fundação, mas como advertência: a razão humana, apartada da Palavra de Deus, é incapaz de conhecer qualquer verdade última.
A verdadeira filosofia começa com a revelação. E nela, Sócrates nunca deu um passo sequer.
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