O texto mais citado não é Apocalipse 20 — é Salmo 110
Vamos começar lembrando um fato desconcertante (para quem se importa com Bíblia): o texto mais citado no Novo Testamento inteiro não é Apocalipse 20 — onde o tal “milênio” aparece em termos altamente simbólicos —, mas sim o glorioso Salmo 110:
"Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés.” (Sl 110.1)
Ora, que coincidência conveniente para os pós-apóstolos milenistas ignorarem: o versículo mais citado no Novo Testamento ensina que Jesus, desde sua ascensão, está REINANDO. Ele não se levanta até que todos os inimigos sejam colocados sob seus pés.
Inclusive o último deles — a morte (1Co 15.26).
Salmo 110, Atos 2, Hebreus 1, 10, 1 Coríntios 15 — todos dizem a mesma coisa:
O Reino de Cristo já começou. E termina quando a morte for vencida.
Paulo escreve em 1 Coríntios 15.24-26:
“Depois virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Pois é necessário que ele reine até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte.”
Vejamos:
Ordem dos eventos Segundo Paulo, inspirado por Deus
Jesus reina agora Desde sua ascensão (cf. Sl 110; At 2.33-36)
Reina até destruir os inimigos Incluindo a morte (último inimigo)
Depois entrega o Reino ao Pai Porque missão cumprida
Mas o pré-milenista, em sua glória analógica, nos quer convencer que Jesus desce para reinar na terra APÓS a ressurreição, num tipo de burocracia escatológica celestial onde o Salvador reina, depois entrega, mas depois volta a reinar só mais um pouquinho, no milênio... porque, sei lá, Deus gosta de enredos confusos?
O argumento do lago de fogo não salva o pré-milenismo — ele o enterra
Imagine a cena: confrontado com o fato de que a morte é vencida na ressurreição, o pré-milenista sai pela tangente:
"Não, veja bem, Paulo diz que o último inimigo é vencido, mas isso acontece quando a morte é lançada no lago de fogo em Apocalipse 20.14. Então ainda tem um espacinho pra milênio depois da ressurreição!"
Ah, claro, como não pensamos nisso? Jesus fica sentado esperando até a morte ser lançada no lago de fogo, e só então Ele se levanta. Isso quer dizer que Ele não desce antes disso.
Ou seja:
👉 Se a morte é vencida na ressurreição, então não há reino milenar depois.
👉 Se a morte é vencida no lago de fogo, então Cristo não pode descer antes disso.
Em ambos os casos, não tem milênio terrestre nenhum com Jesus pisando em Jerusalém como prefeito glorificado.
O trono é no céu, não em Jerusalém
A citação de Salmo 110 em Atos 2.33-36 deixa isso claro:
“Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele próprio declara: ‘Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita.’ [...] Portanto, saiba com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.”
Jesus já reina, e o trono não está em Jerusalém com bandeirinhas israelenses e ministério de turismo pronto para o “milênio”.
Como diz Herman Bavinck:
"A exaltação de Cristo à destra de Deus é o cumprimento da promessa de um reino. A ideia de um reino terreno posterior é, portanto, uma regressão, não um avanço.”
O pré-milenismo é uma sandália da humildade teológica… só que do tamanho errado
Ele reduz o reinado glorioso do Senhor a um tipo de governo geopolítico com templo, sacrifício de animais (em certos modelos), peregrinações e, provavelmente, passaporte de vacinação do Anticristo. É como tentar enfiar o universo dentro de uma tenda do tabernáculo.
Como escreveu Augustus Strong, mesmo no século XIX:
"A ideia de um reino terreno é tão inferior ao reino espiritual presente de Cristo, que seria um retrocesso na teologia cristã aceitar isso como cumprimento.”
Teólogos que zombam — com classe
John Owen:
“A noção de um reino terreno futuro de Cristo ignora a glória do evangelho presente e a eficácia de sua obra completa.”
Anthony Hoekema:
“Apocalipse 20 deve ser lido à luz de todo o Novo Testamento, e não o contrário. O reinado de Cristo já está em andamento, e o ‘milênio’ é simbólico do período entre a primeira e segunda vinda.”
G.K. Beale:
“A interpretação literal de Apocalipse 20 gera contradições com textos explícitos como 1 Coríntios 15 e Salmo 110. Qualquer sistema que colida com tais fundamentos doutrinários deve ser rejeitado.”
Conclusão lógica: O trono é eterno, o milênio literal é efêmero (e não bíblico)
A partir de Salmo 110 e 1Co 15:
1. Jesus só se levanta do trono quando a morte for vencida.
2. A morte é vencida na ressurreição física m ou no lago de fogo.
3. Em qualquer dos casos, não há espaço cronológico para um milênio literal após isso.
Sobre o Reino:
1. Jesus reina agora, desde sua ascensão.
2. Ele reina até destruir todos os inimigos.
3. Depois entrega o Reino ao Pai.
4. Um reinado futuro terreno seria depois da entrega — o que é impossível.
5. Logo, o reinado milenar literal contradiz o próprio esquema paulino.
Epílogo
Vamos ser honestos: defender um milênio literal exige a mesma destreza teológica que interpretar Apocalipse com jornal na mão e mapa de Israel na outra. É um caso clássico de inverter a regra de ouro da exegese:
Em vez de “interpretar os textos obscuros à luz dos claros”, o pré-milenismo faz o oposto:
Ele interpreta todo o Novo Testamento à luz de seis versículos apocalípticos simbólicos.
Isso é o equivalente exegético a tentar montar um quebra-cabeça de 1.000 peças começando por uma peça borrada.