O cessacionismo é a doutrina que afirma que os dons espirituais milagrosos – como profecia, línguas, curas e milagres – cessaram após a era apostólica, tendo cumprido sua finalidade de estabelecer a Igreja primitiva e o cânon das Escrituras. Entretanto, uma análise honesta e exegética da Escritura demonstra que esta doutrina não apenas carece de fundamentação bíblica, mas equivale, na prática, a uma mutilação do próprio Corpo de Cristo.
1. O Corpo de Cristo e a Distribuição dos Dons (1 Coríntios 12)
Em 1 Coríntios 12, o apóstolo Paulo apresenta uma analogia poderosa e instrutiva: a Igreja é o Corpo de Cristo, e os dons espirituais são as diversas funções e membros desse corpo. O texto é claro:
“Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. [...] A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito para o que for útil.”
— 1 Coríntios 12:4,7
Paulo então enumera dons espirituais como sabedoria, conhecimento, fé, curas, milagres, profecia, discernimento de espíritos, línguas e interpretação de línguas (vv. 8-10), e conclui que “todas estas coisas são realizadas pelo mesmo e único Espírito, e ele as distribui individualmente, a cada um, como quer” (v. 11).
A implicação é direta: se o Espírito Santo continua operando na Igreja (e não há nenhum versículo que afirme que Ele cessou de fazê-lo), os dons continuam sendo distribuídos “como quer” e “a cada um”. Declarar que cessaram é impor uma amputação artificial ao Corpo de Cristo, é declarar que partes essenciais da funcionalidade do Corpo já não são mais necessárias.
“Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos.”
— 1 Coríntios 12:14
“Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfato?”
— 1 Coríntios 12:17
O cessacionismo, portanto, promove uma visão monolítica da Igreja, negando sua diversidade funcional. Isso não é apenas teologicamente problemático, é um atentado direto contra a sabedoria do Espírito na formação do Corpo.
2. A Unidade do Corpo Pressupõe os Dons em Atividade
Paulo insiste que todos os membros, mesmo os que parecem mais fracos, são indispensáveis (1 Co 12:22). O cessacionismo, ao alegar que certos dons cessaram, sugere implicitamente que esses membros e funções eram dispensáveis, o que contradiz diretamente a afirmação paulina.
Mais ainda:
“Ora, vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular. E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas.”
— 1 Coríntios 12:27-28
O texto não diz que isso era temporário. Ao contrário, diz que “Deus pôs” tais dons na Igreja, não para um tempo apenas, mas como estrutura funcional permanente. Note que a palavra “igreja” não se refere apenas à Igreja de Corinto, mas à ekklesia universal. Se Deus os colocou, quem pode tirá-los?
3. O Erro do Uso Não Justifica o Abuso do Corte (1 Coríntios 14)
Cessacionistas frequentemente argumentam que os dons causam confusão ou que eram específicos para a era apostólica. Mas Paulo, em 1 Coríntios 14, combate exatamente esse tipo de pensamento.
A igreja de Corinto estava abusando dos dons, especialmente o de línguas. Mas o apóstolo não responde proibindo ou ensinando cessação. Ao contrário:
"Desejai ardentemente os dons espirituais, principalmente o de profetizar.”
— 1 Coríntios 14:1
“Não proibais falar em línguas.”
— 1 Coríntios 14:39
Paulo regula, mas não extingue. Corrige o uso, mas não elimina a prática. Isso é fundamental: o abuso não justifica a abolição.
4. Referências Cruzadas: Continuidade dos Dons no Novo Testamento
A Escritura reforça em vários lugares que os dons continuariam na vida da Igreja:
Efésios 4:11-13: Cristo deu à Igreja apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, “até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem feito”. Ora, se ainda não chegamos a essa maturidade completa (o que é evidente), esses dons ainda são necessários.
Romanos 12:6-8: “Temos diferentes dons, segundo a graça que nos foi dada.” E Paulo não limita o tempo desses dons. Pelo contrário, ordena que sejam exercidos com zelo e diligência.
Marcos 16:17-18: “Estes sinais seguirão aos que crerem...” – a promessa não é apenas para os apóstolos, mas para os crentes. Os cessacionistas devem mostrar onde Jesus disse que isso teria prazo de validade. Não há tal texto.
Atos 2:17-18: “Nos últimos dias, diz Deus, derramarei do meu Espírito sobre toda carne [...] profetizarão [...] sonhos [...] visões.” Pedro aplica esse texto de Joel ao Pentecostes, e não diz que terminará em uma ou duas gerações. Os “últimos dias” abrangem todo o tempo entre a ascensão de Cristo e sua volta (cf. Hb 1:2; 1 Jo 2:18).
1 Tessalonicenses 5:19-20: “Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias.” Isso seria incoerente se os dons cessassem em breve.
5. O Silêncio do Novo Testamento sobre a Cessação
Se os dons fossem cessar com a morte dos apóstolos, seria esperado que ao menos uma epístola doutrinária alertasse os cristãos a não mais buscar ou esperar esses dons. Mas o contrário ocorre: até as últimas cartas apostólicas (como 1 e 2 Timóteo), vemos exortações ao uso dos dons (2 Tm 1:6 – “reavives o dom que há em ti”).
Não há nenhum decreto apostólico dizendo: “a era dos milagres terminou”. Isso é invenção da tradição pós-bíblica, não da Escritura.
6. O Fim dos Dons só ocorre na Segunda Vinda
Um dos textos mais usados por cessacionistas é 1 Coríntios 13:8-10, onde se diz que “as profecias desaparecerão, as línguas cessarão... quando vier o que é perfeito.” Mas o que é o “perfeito”?
"Agora, pois, vemos como em espelho, obscuramente; então veremos face a face.”
— 1 Coríntios 13:12
Isso não é o cânon das Escrituras. Paulo está falando da visão beatífica de Cristo na glória. Logo, os dons cessam não com o fechamento do cânon, mas com a segunda vinda de Cristo. O uso desse texto pelos cessacionistas é completamente distorcido.
Conclusão: Cessar os dons é mutilar o Corpo
Dizer que os dons espirituais cessaram é dizer que o Espírito parou de distribuir membros ao Corpo. Isso é dizer que Deus deixou sua Igreja deficiente, como se ela agora fosse cega, surda e aleijada – exatamente o oposto da imagem que o Novo Testamento transmite da Igreja como plena do Espírito, equipada com armas espirituais e unida em diversidade funcional.
“Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a quantos Deus nosso Senhor chamar.”
— Atos 2:39
O cessacionismo é, no fim das contas, um ataque disfarçado à soberania do Espírito, uma rejeição da Palavra que Ele mesmo inspirou, e uma amputação teológica do Corpo de Cristo.
Referências Bíblicas Cruzadas
1 Coríntios 12–14
Efésios 4:11-13
Romanos 12:6-8
Atos 2:17-21; 2:39
Marcos 16:17-18
1 Tessalonicenses 5:19-20
2 Timóteo 1:6
1 Coríntios 13:8-12
João 14:12
Hebreus 2:4
Atos 4:30-31
Gálatas 3:5