O Abandono Conjugal e o Direito ao Divórcio no Cristianismo Bíblico
Análise Ética, Exegética e Pastoral
“Deus nos chamou à paz.” (1 Coríntios 7:15)
Introdução
A Bíblia permite o divórcio em certos casos excepcionais, como a infidelidade sexual (porneía) e o abandono. Este estudo foca especificamente na natureza do abandono conjugal, buscando compreender, a partir da Escritura, da teologia reformada e de exemplos práticos, quando um cristão está biblicamente livre para se divorciar por abandono — mesmo quando o cônjuge não sai fisicamente de casa, mas rompe o pacto por outras formas funcionais de deserção.
1. O abandono em 1 Coríntios 7:15
Paulo reconhece que o casamento pode ser rompido legitimamente quando o cônjuge descrente se aparta (chōrizetai, no grego), ou seja, se separa, rompe o convívio conjugal.
Silogismo 1:
P1: A Escritura permite o divórcio quando há abandono real do vínculo conjugal.
P2: Abandono real pode ocorrer por separação física ou qualquer forma de cessação intencional das obrigações conjugais.
C: Portanto, o divórcio é lícito quando há abandono real, seja físico ou funcional.
2. O ato de expulsar o cônjuge de casa
Se uma pessoa expulsa o cônjuge de casa, ela é, de fato, quem o abandona, ainda que permaneça no lar.
Exemplo hipotético:
Joana e Pedro vivem juntos, mas Joana, por desdém e hostilidade constante, expulsa Pedro de casa, muda a fechadura e diz: “Nunca mais apareça aqui”. Nesse caso, ela é a parte abandonadora.
Wayne Grudem: “O abandono não exige necessariamente uma partida física. Pode ser caracterizado por qualquer ação que impossibilite a vida conjugal de maneira legítima e contínua.”¹
Silogismo 2:
P1: Quem impede o cônjuge de cumprir o pacto conjugal rompe o pacto.
P2: Expulsar o cônjuge de casa impede esse cumprimento.
C: Portanto, quem expulsa o cônjuge de casa comete abandono.
3. A recusa contínua de intimidade sexual
A recusa sistemática e deliberada de relações sexuais, sem justificativa bíblica, é uma violação direta do dever conjugal.
Exemplo hipotético:
Carlos e Letícia são casados há 6 anos. Letícia decide, sem causa médica ou teológica, que não manterá mais relações com Carlos, e isso perdura por anos. Nesse caso, ela abandonou um dos fundamentos do casamento.
John Frame: “A recusa em cumprir deveres conjugais básicos pode configurar abandono funcional, mesmo que o cônjuge ainda durma na cama ao lado.”²
Silogismo 3:
P1: O casamento implica deveres mútuos essenciais, incluindo a intimidade.
P2: A recusa contínua e impenitente de tais deveres destrói a essência do casamento.
C: Portanto, tal recusa constitui abandono.
4. Outras formas de abandono funcional
Além da expulsão e da recusa sexual, há formas graves de abandono funcional, como:
- Violência física ou emocional recorrente
- Negligência material grave e contínua
- Infidelidade persistente e não arrependida
- Separação emocional completa e deliberada
Jay Adams: “Se o pacto conjugal é rompido pela recusa contínua de viver como cônjuge, o divórcio pode ser legítimo.”³
Silogismo 4:
P1: Um casamento sem convivência verdadeira é um casamento só no nome.
P2: A Escritura permite que o vínculo seja desfeito quando o casamento é de fato destruído.
C: Portanto, a presença física não é garantia de um casamento válido.
5. A liberdade do cônjuge fiel
“... não está sujeito à servidão.” (1Co 7:15) — Isso significa que o crente não está preso ao vínculo, e está livre para casar-se novamente.
Exemplo prático:
Ana é cristã. Seu marido, Renato, abandona a fé, recusa o convívio, não a toca por 3 anos, não provê, e a expulsa emocionalmente de sua vida. Mesmo vivendo na mesma casa, ele abandonou Ana de fato. Segundo a Escritura e os teólogos reformados, Ana está livre.
Conclusão
A doutrina bíblica do abandono conjugal não se restringe ao ato físico de ir embora, mas abrange todas as formas em que o pacto matrimonial é quebrado de maneira intencional, contínua e destrutiva. O cristão não está condenado a uma vida de escravidão e agonia quando o outro cônjuge destrói o casamento.
“Deus nos chamou à paz.” (1Co 7:15)
Notas de rodapé
1. 1. Wayne Grudem, *Christian Ethics: An Introduction to Biblical Moral Reasoning*, Crossway, 2018, p. 939-943.
2. 2. John Frame, *The Doctrine of the Christian Life*, P&R Publishing, 2008, p. 810.
3. 3. Jay E. Adams, *Marriage, Divorce, and Remarriage in the Bible*, Zondervan, 1980, p. 82-90.