Contra o Concorrentismo e o Compatibilismo: Uma Defesa Ocasionalista
Introdução
O debate sobre a causalidade divina e a responsabilidade humana permeia séculos da teologia cristã. A tradição reformada, por meio de autores como João Calvino, Jonathan Edwards, Gordon Clark e Vincent Cheung, sustentou uma doutrina fortemente monergista da providência: Deus é a causa imediata e exclusiva de todas as coisas — inclusive dos atos morais das criaturas. Em contraste, o Concorrentismo e o Compatibilismo — posições populares entre tomistas, molinistas reformados e alguns calvinistas inconsistentes — afirmam que Deus coopera ou concorre com a criatura, mas que esta possui uma causalidade própria em nível secundário ou subordinado.
Neste capítulo, defenderemos que tais visões são incoerentes, antibíblicas e metafisicamente absurdas, especialmente à luz do ensino de Atos 17:28, o qual será o ponto focal da crítica.
I. A Causalidade Exclusiva de Deus: Quatro Argumentos Bíblicos Fundamentais
1. As criaturas sequer são chamadas de causas em relação a Deus
Quando José fala aos seus irmãos, ele afirma:
“Não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus.”¹
E:
“Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem.”²
As ações humanas, embora reais, não são ontologicamente causais diante de Deus. O pecado dos irmãos foi o próprio plano de Deus para exaltar José.
2. A analogia do autor e personagem
“Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nenhum deles havia ainda.”³
Deus é o Autor soberano da história. Um personagem num romance não “concorreria” com o autor para produzir as ações do enredo. Seria absurdo afirmar que um personagem “coopera” com o autor em nível causal. Assim também é com Deus.
3. Jesus sustenta todas as coisas continuamente
“Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste.”⁴
Isso implica o criacionismo contínuo: cada átomo, pensamento e evento moral permanece existindo apenas porque Jesus ativamente o mantém.
4. Todas as coisas são causadas em Deus, e não em paralelo com Ele
“Nele fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade.”⁵
“Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.”⁶
“Nosso Deus está nos céus; faz tudo o que lhe agrada.”⁷
“Ele sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder.”⁸
II. A Redução ao Absurdo da interpretação dos aristotélicos de Atos 17:28
“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos...”⁹
Os compatibilistas alegam que o trecho “nele nos movemos” significa que produzimos nossos próprios movimentos, e que Deus apenas nos capacita ou sustenta. Isso implicaria uma espécie de “concorrência” ontológica onde Deus coopera com a criatura para que ela atue de forma autônoma, embora subordinada.
No entanto, tal leitura é gramatical e logicamente insustentável. Vejamos por quê:
1. Os três verbos são paralelos
A estrutura da frase é trina:
“Nele vivemos, nos movemos e existimos.”
Se o segundo verbo, “nos movemos”, é entendido como ação autônoma capacitada por Deus, o mesmo raciocínio deveria ser aplicado aos outros dois verbos. Mas então “nele existimos” significaria que produzimos nossa própria existência, o que é absolutamente absurdo. A criatura não causa sua própria existência. A existência da criatura é derivada e sustentada a cada instante pelo Criador.
2. O argumento leva ao politeísmo funcional
Se aceitarmos que a criatura é causa de si mesma em qualquer nível real de existência, então temos duas causas ontológicas independentes no universo: Deus e a criatura. Isso é o núcleo do politeísmo: mais de uma fonte de causalidade absoluta. É o mesmo erro ontológico de Platão, Aristóteles e dos pagãos que Paulo combate em Atos 17.
III. Testemunho de Autores Reformados e Ocasionalistas
Vincent Cheung:
“Se é ‘em Deus’ que nos movemos, então o movimento é um produto do sustento e do decreto divino, não da autonomia da criatura. O texto não diz que Deus apenas ‘permite’ ou ‘habilita’, mas que tudo o que somos e fazemos é nEle.”¹⁰
Jonathan Edwards:
“O ser da criatura depende constantemente de uma causa positiva. Remova a causa, e o ser cessa.”¹¹
Se existir é depender totalmente de Deus, o mesmo vale para mover-se ou agir moralmente.
Gordon Clark:
“Sustentar é causar. Se o movimento ocorre, e Deus o sustenta, Ele o causa. Caso contrário, o movimento é autônomo — o que é impossível.”¹²
João Calvino:
“Se o movimento não procede de Deus, mas apenas depende dEle, então a criatura se move por si mesma, o que é contra a doutrina bíblica.”¹³
Robert L. Reymond:
“Atos 17:28 ensina que todas as operações ontológicas do ser criado estão continuamente dependentes de Deus. A filosofia da autonomia humana é, portanto, heresia.”¹⁴
Herman Bavinck:
“As causas segundas não agem senão na medida em que Deus age nelas e por meio delas.”¹⁵
IV. Ocasionalismo como a única alternativa coerente
Se Deus é a única causa real, então as criaturas não são agentes ontológicos independentes, mas ocasiões nas quais Deus manifesta seu decreto. Isso não nega a realidade das ações humanas, mas define corretamente sua natureza metafísica.
O Concorrentismo, ao postular uma “causa secundária” ativa e real, acrescenta um princípio causal independente à ontologia cristã, tornando-se incompatível com o monoteísmo bíblico.
Conclusão
O Concorrentismo e o Compatibilismo falham:
Biblicamente, ao ignorarem a estrutura de textos como Atos 17:28 e Efésios 1:11;
Filosoficamente, ao multiplicarem causas ontológicas sem necessidade e sem motivos racionais
Teologicamente, ao insinuarem uma autonomia da criatura que contradiz a soberania absoluta de Deus.
A única posição fiel à Escritura e à razão santificada é o Ocasionalismo calvinista: Deus é a causa exclusiva de toda existência e movimento. As criaturas não concorrem com Deus, pois não possuem em si mesmas nenhuma causalidade verdadeira.
“A vontade do homem é como um cavalo. Se Deus cavalga sobre ele, ele vai para onde Deus quer. Se o diabo cavalga sobre ele, ele vai para onde o diabo quer. Mas o homem por si mesmo não pode escolher o cavaleiro.”¹⁶
Todo movimento — físico, moral, espiritual ou intelectual — é causado por Deus, e apenas ocorrido na criatura. Esta é a doutrina bíblica, esta é a doutrina reformada, esta é a verdade.
Notas de Rodapé
1. Gênesis 45:8
2. Gênesis 50:20
3. Salmo 139:16
4. Colossenses 1:17
5. Efésios 1:11
6. Eclesiastes 11:5
7. Salmo 115:3
8. Hebreus 1:3
9. Atos 17:28
10. Vincent Cheung, The Author of Sin, 2004, p. 15.
11. Jonathan Edwards, Of Being, in The Works of Jonathan Edwards, Yale University Press, vol. 1, p. 394.
12. Gordon Clark, God and Evil: The Problem Solved, 1996, p. 34.
13. João Calvino, Institutas da Religião Cristã, III.21.5.
14. Robert L. Reymond, A New Systematic Theology of the Christian Faith, 2nd ed., Thomas Nelson, 1998, p. 350.
15. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 2, p. 618.
16. Martinho Lutero, De Servo Arbítrio, 1525.