Anaxímenes de Mileto e o Fôlego Racional do Nada
Se você já se perguntou como seria construir uma cosmovisão do universo inteiro a partir do vento que sopra, o ar que se respira e a leveza de uma brisa de verão, então você e Anaxímenes de Mileto teriam muito em comum. Sim, caro leitor, é exatamente disso que se trata a monumental contribuição desse filósofo pré-socrático ao pensamento humano: o ar é o princípio de tudo.
I. Quem foi Anaxímenes?
Anaxímenes de Mileto, ativo por volta do final do século VI a.C., foi um dos pensadores da escola jônica, sucessor de Tales e Anaximandro. Enquanto Tales atribuía toda a realidade à água e Anaximandro a um “ápeiron” (o indefinido ou o ilimitado), Anaxímenes resolveu descer um degrau na escala de profundidade e declarar que o “archê” – o princípio fundamental de todas as coisas – é o ar.
Parece, à primeira vista, que estamos diante de um tipo de espiritualidade primitiva. Afinal, o ar é invisível, onipresente e vital. Mas não se engane, leitor: essa elevação do ar à divindade metafísica é tudo, menos espiritualidade verdadeira. Na verdade, é apenas a idolatria em sua forma gasosa.
II. A Doutrina do Ar: Uma Cosmologia Pneumática
Segundo Anaxímenes, todas as coisas derivam do ar por processos de rarefação e condensação. Quando o ar rarefaz, transforma-se em fogo; quando condensa, torna-se vento, nuvem, água, terra e até pedra. Uma escada metafísica de agregados atmosféricos. Com isso, Anaxímenes achou que havia resolvido o mistério do universo – sem recorrer a deuses com barbas longas ou mulheres aladas, o que para sua época já era um avanço metodológico.
Mas vejamos bem: ao transformar o ar num agente demiúrgico que cria todas as formas de matéria e vida, Anaxímenes não escapa ao impulso religioso. Ele apenas troca a linguagem de mitos antropomórficos por uma mitologia da física – um paganismo refinado, onde o altar é construído com moléculas suspensas.
III. O Ar como Alma do Cosmos
Além disso, Anaxímenes ensinava que assim como a alma humana é feita de ar e mantém o corpo unido, o “ar universal” mantém o cosmos coeso. Ora, que singelo! É a alma inflável da natureza. E ainda dizem que a filosofia antiga era profunda...
Na tentativa de se afastar dos deuses tradicionais do panteão grego, Anaxímenes acaba divinizando um aspecto da criação, e pior: um aspecto invisível e incontrolável – como se a ignorância ganhasse respeitabilidade ao se revestir de sutileza.
Carl F. H. Henry ironizaria bem essa postura em sua God, Revelation and Authority, ao notar que “a negação da revelação proposicional resulta sempre na absolutização de alguma contingência”. E aqui está ela, a contingência do dia: o ar. Uma cosmovisão feita de sopro, um sistema de pensamento que se esvai no vento antes mesmo de começar a ser articulado.
IV. Crítica Apologética Pressuposicional: O Vento que Nada Afirma
Segundo o método pressuposicional, toda cosmovisão deve ser julgada por sua coerência interna e pela possibilidade de fornecer as condições para o conhecimento, a lógica, a moral e a ciência. A pergunta essencial não é: “Será que posso respirar isso?”, mas “Será que posso pensar com isso?”
E a resposta, neste caso, é um sonoro não.
O sistema de Anaxímenes falha em oferecer qualquer base epistemológica sólida. O ar, por mais necessário à sobrevivência biológica, não é autoconsciente, não possui intencionalidade, nem fornece critérios para verdade, lógica ou moralidade. Ele não pode justificar o conhecimento porque não pensa. E, parafraseando John Owen: “O que não pensa não pode revelar, e o que não revela nada pode ensinar”.²³
Abraham Kuyper, com sua distinção entre os dois tipos de conhecimento – aquele que parte da regeneração e da revelação e aquele que é aprisionado pelo pecado – teria denunciado Anaxímenes como um exemplo de homem natural tentando construir uma catedral metafísica com os escombros do naufrágio adâmico. Para Kuyper, “não existe um centímetro quadrado da existência sobre o qual Cristo não diga: é meu”²⁴ Anaxímenes, porém, parecia convencido de que tudo o que existe pertence ao ar – o que só prova que a idolatria não tem limites, nem consistência.
O homem natural quer escapar de Deus, mas precisa se agarrar a alguma coisa. O problema é que, ao rejeitar a Palavra de Deus, ele se agarra ao invisível, impessoal e insensato. Ele recusa o Logos eterno, mas se abraça ao ar – literalmente. Como diria Henry novamente, “quando o homem abandona a revelação, ele não se torna neutro – ele se torna irracional”.²⁵
V. Um Sistema que Se Dissipa
A cosmologia de Anaxímenes não apenas carece de um fundamento pessoal e racional, mas também de qualquer possibilidade de transcendência. O “ar divino” é imanente, limitado, finito e sujeito às leis da natureza – que, aliás, ele mesmo deveria explicar. Como um sistema que depende do que deveria justificar, é um círculo vicioso com cheiro de vento estagnado.
Além disso, ele confunde contingência com necessidade. O ar é uma criatura, não o Criador. Depende de condições para existir, se move, se transforma, se mistura. Não tem essência imutável, não é eterno nem onisciente. A teologia reformada ensinaria que apenas o Deus Trino, autoexistente, infinito e pessoal, pode servir de fundamento para o ser e o saber. Mas Anaxímenes nos oferece uma entidade instável, intangível e inconsciente como sustentáculo do real.
VI. Conclusão: O Bafo da Insensatez
Anaxímenes pode ter sido um inovador em termos da física primitiva, mas como teólogo da existência, ele fracassa espetacularmente. Seu sistema não responde às questões mais básicas da vida humana: “Quem sou?”, “De onde vim?”, “Por que existe o bem e o mal?”, “O que é verdade?”. Ele é como um balão cheio de vento filosófico: parece subir, mas não leva ninguém a lugar algum.
Em última análise, o pensamento de Anaxímenes é uma forma refinada de rebelião contra o Deus verdadeiro. Ele substitui a Rocha Eterna por uma névoa especulativa. Ele troca a revelação objetiva por um palpite respirável. E como todo idólatra, ele constrói seu altar com a matéria-prima mais disponível: o próprio fôlego humano.
Como disse o apóstolo Paulo: “Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1:22). E Anaxímenes, com toda sua brisa metafísica, é apenas mais uma evidência disso.
Notas
²³ A frase “O que não pensa não pode revelar, e o que não revela nada pode ensinar” não é uma citação literal de John Owen em nenhuma de suas obras conhecidas. Trata-se de uma paráfrase sarcástica e estilizada, feita para combinar com o tom irônico e apologético do texto, refletindo princípios que John Owen efetivamente sustentava, mas não com essas palavras exatas.
Owen, especialmente em obras como "The Reason of Faith" e "Biblical Theology", argumenta que:
1. O conhecimento verdadeiro depende da revelação proposicional de Deus;
2. Deus é um ser pessoal, racional e comunicativo, e somente Ele pode ser a fonte do conhecimento;
3. As coisas criadas não podem comunicar verdade ou sabedoria salvadora sem mediação da Palavra revelada.
Por exemplo, em The Reason of Faith (cap. 1), Owen afirma:
“Divine revelation is the only foundation and formal reason of faith... and reason itself, in its best exercise, can rise no higher than to a conviction that such a revelation is necessary.”
Ou seja, Owen ensinava que somente um ser racional e proposicional pode revelar verdades. Daí, a frase “O que não pensa não pode revelar...” se torna uma expressão sintética desse pensamento, ainda que com linguagem moderna e provocativa.
²⁴ Abraham Kuyper: A Centennial Reader, ed. James D. Bratt (Eerdmans, 1998), p. 488. Também veja em Abraham Kuyper, Souvereiniteit in Eigen Kring (Soberania na Própria Esfera), 1880
²⁵ A frase “quando o homem abandona a revelação, ele não se torna neutro – ele se torna irracional” é uma paráfrase fiel das ideias de Carl F. H. Henry, especialmente das que ele desenvolve ao longo da sua obra monumental God, Revelation and Authority, mas não aparece com essas palavras exatas em nenhum volume.
Essa formulação sintetiza o argumento central que Henry apresenta repetidamente, especialmente:
Fonte conceitual:
• Carl F. H. Henry, God, Revelation and Authority, Vol. 1 (Waco, TX: Word Books, 1976), p. 37:
“Man is not religiously neutral; he is either committed to divine revelation or he becomes a victim of autonomous speculation.”
• Vol. 1, p. 219:
“When man refuses God’s revelation, he does not escape authority; he only substitutes one authority for another—usually his own reason, which is fallen and finite.”
• Vol. 1, p. 229:
“Rejection of divine revelation leads not to neutrality, but to irrationalism and confusion.”
Portanto, a frase “quando o homem abandona a revelação, ele não se torna neutro – ele se torna irracional” é uma resumida reconstrução fiel dessas ideias, usada por muitos teólogos reformados e apologetas pressuposicionalistas influenciados por Henry, como Francis Schaeffer, Greg Bahnsen e até não reformados como Norman Geisler.
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