domingo, 25 de maio de 2025

Contra o Legalismo Reprodutivo: Uma Resposta aos Neo-Puritanos

 Contra o Legalismo Reprodutivo: Uma Resposta aos Neo-Puritanos

Os chamados neo-puritanos frequentemente atacam casais cristãos que, por sabedoria, vocação ou circunstâncias, optam por não ter filhos. Alegam que tal escolha é antibíblica ou mesmo pecaminosa. Contudo, toda tentativa de usar as Escrituras para impor um mandamento universal de procriação a todos os cristãos revela uma completa e alarmante falta de exegese bíblica. A seguir, refutamos tais alegações ponto por ponto, à luz da boa teologia e da fiel interpretação das Escrituras.

1. Gênesis 1.28: Uma bênção, não um mandamento moral universal

A frase “Sede fecundos, multiplicai-vos…” (Gn 1.28) é precedida pela expressão “E Deus os abençoou e lhes disse…”. O fato de a bênção ser expressa em forma imperativa não a torna automaticamente um mandamento moral universal. Isso é como dizer a alguém: “Sejam felizes!” — o tom pode ser imperativo, mas a intenção é declarativa, desejosa ou profética. Trata-se de um anúncio abençoador da parte de Deus, não de um preceito normativo para todos os tempos. A procriação, nesse contexto, é uma dádiva concedida, não uma obrigação imposta.

2. Animais também receberam essa “ordem”

Em Gênesis 1.22, os animais irracionais também recebem a mesma exortação: “Frutificai e multiplicai-vos…”. Ora, se essa expressão fosse um mandamento moral, os animais seriam agentes morais, o que é absurdo. A verdade é que tal linguagem revela apenas o decreto providencial de Deus, o que Ele mesmo causará no mundo criado — e não um imperativo ético. Como as estrelas, que são chamadas pelo nome e comparecem (Sl 147.4; Is 40.26), a multiplicação dos seres vivos segue o plano divino decretado, e não uma obrigação moral.

3. O propósito original já foi cumprido

O objetivo da bênção dada no Éden e repetida a Noé era “encher a terra” (Gn 1.28; 9.1). Este objetivo foi cumprido conforme Gênesis 9.19: “Estes três foram os filhos de Noé; e destes se povoou toda a terra.” Não há qualquer indicação bíblica de que esta bênção precise ser perpetuada como um mandamento obrigatório para todos os indivíduos ao longo da história humana.

4. A instrução foi dada ao casal original, não a todos os casais

Outro erro comum é afirmar que, porque a fala de Gênesis foi direcionada a um casal, todos os casais devem seguir o mesmo padrão. No entanto, é evidente que Adão e Eva eram o casal original, e o que lhes foi dito tinha implicações específicas no contexto da criação e do início da humanidade. É uma falácia aplicar diretamente a toda humanidade moderna um princípio que foi dado com um propósito específico, em um contexto irrepetível.

5. Jesus não teve filhos — e foi perfeito em obediência

Cristo, o modelo de obediência perfeita (Fp 2.8), nunca se casou nem teve filhos. Ainda assim, Ele “cumpriu toda a justiça” (Mt 3.15), até mesmo sendo batizado sem ter pecado, simplesmente para cumprir toda a vontade de Deus. Se gerar filhos fosse parte essencial da obediência moral universal, Cristo — o homem perfeito — certamente teria se casado e procriado. O fato de não o ter feito é prova clara de que tal prática não é um mandamento absoluto.

6. A existência de exceções mostra que não há obrigação universal

A Bíblia reconhece explicitamente eunucos e celibatários (Mt 19.12; 1Co 7.7-8), e os honra como exemplos de piedade. Paulo declara que o celibato é uma dádiva para alguns, e Jesus confirma que há aqueles que se fazem eunucos “por causa do Reino dos Céus”. Isso mostra que a procriação não é um dever moral inescapável. Além disso, casais que optam por não ter filhos por prudência — por exemplo, devido a desemprego, enfermidades ou condições adversas — estão agindo com responsabilidade. Colocar filhos no mundo sem condições mínimas é imprudência, não piedade.

7. Em 1 Timóteo 2.15 Paulo não impõe a maternidade como dever universal

O versículo “a mulher será salva dando à luz filhos” (1Tm 2.15) tem sido usado erroneamente. A linguagem pode se referir à maternidade natural, espiritual ou até à adoção. Mais importante, o artigo definido “τῆς” no grego sugere uma ideia geral, não um ato específico. Calvino comenta:

“Paulo não está aqui tratando do modo pelo qual toda mulher deva buscar a salvação, mas está corrigindo um possível escândalo a partir da queda de Eva, indicando que Deus honrou o sexo feminino ao fazer dele o canal da redenção.”

A maternidade aqui é vista como uma vocação digna, não um mandamento universal.

A generalidade de exortações não implica deveres universais em cada detalhe

Quando dizemos: “Quero que os homens sejam piedosos, amem uns aos outros, sejam bons marinheiros”, não estamos instituindo que todos os homens, por mandamento divino, se tornem marinheiros. O discurso exortativo pode conter elementos exemplares sem exigir que cada um deles seja igualmente obrigatório para todos. O argumento visa promover virtudes (piedade e amor) e excelência em ofícios (representado aqui por “bons marinheiros”), sem fazer da atividade marítima um dever moral universal.

Esse tipo de linguagem é comum nas Escrituras. Assim como Paulo afirma que “a mulher será salva dando à luz filhos” (1Tm 2.15), sem que isso signifique que todas as mulheres devem, sem exceção, ser mães biológicas, também podemos usar exemplos vocacionais (como “marinheiros”) para ilustrar ideais mais amplos sem impor uma norma absoluta. A analogia serve para destacar a dignidade do serviço fiel em qualquer vocação lícita.

Portanto, ao interpretar exortações — tanto na Escritura quanto em aplicações teológicas — devemos distinguir entre virtudes universais e ilustrações circunstanciais. Não fazemos da metáfora uma lei, mas extraímos dela o princípio que ela visa comunicar.

8. O texto de 1 Timóteo 5.14 expressa desejo pastoral, não preceito moral

Quando Paulo diz “quero que as viúvas mais jovens se casem, tenham filhos…” (1Tm 5.14), a palavra usada é boulomai, que expressa desejo, vontade pessoal ou conselho pastoral — não uma ordem autoritativa. Calvino esclarece:

“Paulo, portanto, não ordena com autoridade apostólica, mas dá um conselho piedoso segundo o juízo da prudência e da experiência.”

Logo, é um princípio prático para casos específicos, e não um imperativo moral para todos os tempos e pessoas.

9. A Nova Aliança eleva o celibato como dom valioso e desejável

Em 1 Coríntios 7, Paulo afirma que deseja que todos fossem como ele — isto é, celibatários (v. 7) — e que o solteiro “cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor” (v. 32). Em contraste, o casado se preocupa “com as coisas do mundo”. Isso indica que, no Novo Testamento, a procriação não é o centro da piedade, e sim o serviço ao Senhor com dedicação indivisa. A Nova Aliança desloca o foco da descendência natural para a descendência espiritual (Gl 3.29).

10. A verdadeira fecundidade no Reino é espiritual, não biológica

Jesus ensina que “quem fizer a vontade de meu Pai… esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12.50). Paulo chama os crentes de seus “filhos” (1Co 4.15; Gl 4.19; Fm 10), indicando que gerar vidas espirituais é mais significativo do que gerar filhos biológicos. Casais que discipulam, evangelizam e cuidam de outros crentes podem ser mais fecundos no Reino do que famílias numerosas que não educam os filhos na fé.

Conclusão

A tentativa de impor a todos os casais cristãos a obrigação de ter filhos é um erro exegético, teológico e pastoral. Não apenas ignora a variedade de dons, vocações e circunstâncias que Deus distribui soberanamente entre seus filhos, mas também corrompe o evangelho ao introduzir um legalismo reprodutivo. Ser fecundo no Reino de Deus é antes de tudo uma questão espiritual, e não biológica.

Como disse Jonathan Edwards:

“O fim principal da obra de Deus é a comunicação da sua glória, e não a perpetuação da espécie humana em si mesma.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário