“Por que me desamparaste?” — O abandono judicial de Cristo e a glória da unidade trinitária
Por Yuri Andrei Schein
Em Mateus 27:46 e Marcos 15:34, lemos o clamor mais profundo, angustiante e teologicamente denso já proferido por um ser humano: “Eli, Eli, lamá sabactâni?”, que se traduz: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Tal declaração, feita pelo Senhor Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus encarnado, não deve ser compreendida como expressão de ignorância quanto ao plano redentor, tampouco como mero desespero psicológico ou existencial diante do sofrimento físico da crucificação. Antes, trata-se de uma revelação sublime do ápice da obra expiatória: o momento em que Cristo, como Mediador da nova aliança, assume sobre si a maldição do pecado, a penalidade da Lei e o juízo divino destinado aos eleitos. A experiência do “abandono” foi real, judicial, penal e pactual — ainda que não ontológica.
Como já defendi anteriormente, a cruz de Cristo representa a mais intensa convergência entre a santidade divina e o amor eletivo (cf. SCHEIN, 2024). O Filho de Deus, que em sua natureza divina jamais poderia ser separado do Pai (cf. Jo 10:30; Hb 1:3), em sua missão como Mediador da aliança eterna (Hb 13:20) assume a culpa imputada dos pecadores e, por isso, sofre o afastamento da face favorável de Deus. Isso não implica em ruptura ontológica na Trindade — o que seria uma heresia —, mas uma suspensão judicial e relacional da comunhão beatífica entre o Pai e o Filho, conforme o pacto da redenção previamente determinado na eternidade (cf. Ef 1:3-11).
Esse entendimento doutrinário é sustentado por uma longa tradição de teologia reformada:
João Calvino (1509–1564), em suas Institutas da Religião Cristã, afirma categoricamente que Cristo foi “atormentado pelas penas da morte eterna” e que “sofreu todos os sinais da ira de Deus” como se tivesse sido “efetivamente separado” da comunhão divina (CALVINO, 2006, II.16.10). Ele argumenta que esse desamparo não foi uma separação em essência, mas em relação ao ofício mediador de Cristo sob a penalidade da Lei.
Martinho Lutero (1483–1546), ao meditar sobre essa passagem, declarou perplexo: “Deus abandonado por Deus — quem pode entendê-lo?” Para Lutero, esse mistério envolve a realidade de que Cristo, sendo santo, assumiu a condição de maior pecador da história por imputação, pois todos os pecados da humanidade eleita foram lançados sobre Ele (LUTERO apud STOTT, 2006, p. 83).
John Owen (1616–1683), um dos mais notáveis teólogos puritanos, assevera em sua obra The Death of Death in the Death of Christ que a ausência da comunhão abençoada com Deus constitui a essência da penalidade da Lei. Ele escreve: “Cristo suportou a penalidade da Lei em nosso lugar, o que inclui a privação da comunhão divina que é a essência da maldição eterna” (OWEN, 2007, p. 214).
R.C. Sproul (1939–2017), em sua exegese sobre a crucificação, sustenta que Cristo foi, de fato, amaldiçoado (cf. Gl 3:13). Ele comenta: “A presença benevolente do Pai foi retirada. Cristo experimentou o inferno — não como lugar, mas como separação pactual de Deus” (SPROUL, 1997, p. 72). Aqui, Sproul distingue com precisão entre a unidade ontológica trinitária — que permanece inviolável — e a comunhão relacional que foi temporariamente suspensa por causa da obra substitutiva.
Wayne Grudem, em sua Teologia Sistemática, afirma que “Deus voltou o rosto contra seu Filho” e que “Jesus sentiu o terror da separação da bênção do Pai”, sem que isso implicasse divisão na Trindade (GRUDEM, 2017, p. 570).
Vincent Cheung, com sua abordagem lógica e direta, declara: “Cristo sofreu aquilo que os réprobos sofrerão eternamente: ausência da comunhão com Deus, maldição, abandono, dor infinita. Mas como Filho eterno, a união essencial com o Pai nunca foi rompida” (CHEUNG, 2004, p. 48). Ele reforça o ponto de que a penalidade foi real e plena, ainda que a ontologia divina permanecesse imutável.
Jonathan Edwards (1703–1758) argumenta que “a mão do Pai foi estendida contra o Filho” e que Deus tratou Jesus como um substituto legal, não mais como um filho no sentido da comunhão benigna. Ele escreve: “O véu da comunhão foi retirado, e Cristo experimentou a verdadeira ausência da presença abenigna de Deus” (EDWARDS, 2006, p. 116).
Conclusão: O mistério da cruz como ápice da revelação trinitária
A doutrina reformada sustenta com absoluta clareza e precisão os dois pilares essenciais para uma compreensão ortodoxa da cruz de Cristo: (1) que houve um real e verdadeiro desamparo judicial, relacional e pactual do Filho, conforme o pacto da redenção exigia; e (2) que a unidade ontológica e essencial entre as Pessoas da Trindade jamais foi rompida. Deus não pode contradizer a si mesmo. A Trindade não se fragmenta. O que ocorre na cruz é que o Mediador, Jesus Cristo, voluntariamente assume o lugar dos eleitos, e sob o peso da Lei, é tratado como maldito para que os pecadores fossem tratados como filhos (cf. Is 53; 2Co 5:21; Gl 3:13; Rm 5:6-10).
A cruz, portanto, é o teatro supremo da glória trinitária: o Pai que entrega o Filho (Rm 8:32), o Filho que se oferece a si mesmo sem mácula (Hb 9:14), e o Espírito que sustenta o Redentor em obediência perfeita até o fim (Hb 9:14; Mt 4:1; Lc 4:1). Longe de ser um escândalo teológico ou uma quebra na unidade divina, o Calvário é o ápice da autorrevelação de Deus como justo e justificador (Rm 3:26).
Este é o evangelho reformado. Este é o clamor do Justo pelos injustos. Este é o coração da fé cristã bíblica.
Referências:
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. 2. ed. Trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Livro II, Cap. 16.
CHEUNG, Vincent. The Atonement of Christ. New York: Vincent Cheung Publishing, 2004.
EDWARDS, Jonathan. A História da Redenção. São Paulo: PES, 2006.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática: Uma Análise Bíblica, Histórica e Contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2017.
LUTERO, Martinho apud STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida, 2006.
OWEN, John. The Death of Death in the Death of Christ. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 2007.
SCHEIN, Yuri Andrei. Por que Jesus disse: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Artigo inédito], 2024.
SPROUL, R. C. The Holiness of God. Wheaton: Tyndale House, 1997.
Nenhum comentário:
Postar um comentário