Inácio de Antioquia: o Apóstolo do Bispo
Se os gnósticos forjaram um mundo espiritual paralelo com mil e um eões imaginários, Inácio de Antioquia forjou, desde muito cedo, um caminho para a idolatria institucional: a figura do bispo como mediador entre Deus e os homens. Ele não criou o bispo — as Escrituras de fato mencionam epíscopos (Atos 20:28; 1 Tm 3:1; Tt 1:7) — mas Inácio não se contentou com isso: ele promoveu o bispo à posição de substituto de Cristo na igreja local. Com isso, colocou a fundação do romanismo sobre a mesa com toda a pompa de um discípulo dos apóstolos.
I. O Culto ao Bispo
Nas sete cartas que escreveu a caminho do martírio, Inácio repete com obsessiva regularidade que nada deve ser feito sem a permissão do bispo. Vejamos apenas algumas amostras:
“É necessário, portanto, como já fazeis, que nada façais sem o bispo.” (Carta aos Tralianos, 2)
“Onde está o bispo, aí deve estar a multidão, da mesma forma que onde está Cristo, está a Igreja católica.” (Carta aos Esmirniotas, 8)
Com isso, ele transforma a autoridade da Palavra de Deus em apêndice do consentimento episcopal. O ensino bíblico, porém, jamais estabelece que a vontade de um homem, ainda que piedoso, deva ser critério normativo absoluto. Os apóstolos foram infalíveis apenas enquanto inspirados pelo Espírito, e mesmo assim repreendiam-se mutuamente quando erravam (cf. Gálatas 2:11).
Vincent Cheung denuncia com clareza esse tipo de idolatria:
“Quando um homem se torna a medida da doutrina, a verdade é substituída pela tirania.”
(Ultimate Questions, p. 72)
II. Contradição com as Escrituras
Inácio não ensina como Paulo, Pedro ou João. Os apóstolos mandam que se sigam os pastores que ensinam a Palavra fielmente (Hebreus 13:7), que os presbíteros sejam pluralidade governante (Atos 14:23), que o pastor seja servo, não senhor (1 Pedro 5:3). Já Inácio manda obedecer ao bispo como a Deus:
“Obedecei ao bispo como a Jesus Cristo.” (Carta aos Magnésios, 6)
É doutrina católica romana avant la lettre. É sacerdotalismo puro, uma transposição do modelo levítico para o ministério neotestamentário, sem base nenhuma em Efésios 4 ou 1 Pedro 2:9, onde todo crente é sacerdote.
João Calvino comenta essa tendência com aguda precisão:
“É impossível que a glória de Cristo permaneça intacta, se o governo de um homem se estabelece com autoridade que não se funda na Palavra.”
(Institutas, IV.8.9)
III. A Semente da Tradição Oral e da Igreja como Norma
Inácio, ao colocar o bispo como cabeça prática da igreja, sem subordinação clara à Escritura, está assumindo uma epistemologia eclesiocêntrica. O conhecimento da verdade passa pelo bispo, e a segurança da fé é medida pela submissão à estrutura episcopal. Isso se distancia radicalmente do pressuposto revelacional.
Gordon Clark, em contraste, afirma:
“A Bíblia, e somente a Bíblia, é o fundamento epistemológico do cristianismo. A igreja é sua serva, não sua fonte.”
(God and Evil, p. 21)
A tradição oral defendida por Inácio se tornaria o DNA da alegação romana de que “a Igreja nos deu a Bíblia”. A lógica é a mesma: se o bispo é o Cristo local, então o bispo é a autoridade final. Mas isso nega o que Cristo declarou:
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz.” (João 10:27)
“Santifica-os na verdade; a tua Palavra é a verdade.” (João 17:17)
Inácio, portanto, desloca a fonte da verdade da Palavra para a hierarquia, antecipando a epistemologia católica de Tomás de Aquino e a autoridade infalível do magistério romano — tudo isso com ar de piedade e zelo eclesiástico.
IV. Conclusão Reformada
Reformadores e puritanos enxergaram em Inácio o início de um desvio perigoso. Embora não seja herege no mesmo nível dos gnósticos, ele lança a semente do erro estrutural que floresceria no papismo.
John Owen afirmou:
“O princípio da tradição extra-escritural, mesmo que bem-intencionado, é a primeira negação prática da suficiência da Escritura.”
(Of the Divine Original of the Scriptures, p. 16)
Assim, Inácio, o bispo-mártir, talvez com boas intenções, nos deixou um legado de eclesiolatria e tradição infundada. Seu exemplo é mais um lembrete de que nem todo discípulo de apóstolos anda segundo a Escritura — e que a obediência cega a homens piedosos é a raiz do erro mais devastador da história da igreja.
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