A Bíblia nos ordena a sermos mansos. Jesus mesmo diz para aprendermos dele, que é “manso e humilde de coração” (Mt 11.28-30). Maravilha. Só que, curiosamente, o mesmo Jesus que nos convida ao descanso com essa mansidão celestial também entrou no templo com um chicote, derrubou mesas, expulsou cambistas (Jo 2.14-17) e ainda fez questão de chamar uma elite religiosa inteira de “raça de víboras” (Mt 23.13-39). Para completar, Ele não economizou na repreensão aos discípulos incrédulos (Mt 16.14) e até mesmo a um respeitadíssimo mestre de Israel, Nicodemos, que levou um belo “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?” (Jo 3.10).
Jesus também apontou o dedo na cara dos fariseus e saduceus (Mt 12.29; 22.29), dizendo sem rodeios que eles não conheciam nem as Escrituras nem o poder de Deus. E aos discípulos no caminho de Emaús, que eram os “do time dele”, chamou de “nécios e tardios de coração” (Lc 24.25). Traduzindo para o português mais popular: “vocês são lerdos demais para crer”.
Ou seja, a mansidão que Jesus viveu não tem nada a ver com a mansidão de comercial de margarina que muitos cristãos acham que devem praticar hoje. Não é um convite à covardia ou à conivência com o erro, muito menos um “seja legal para ver se cola”. É uma postura humilde diante de Deus e firme contra o pecado, contra a heresia e contra a hipocrisia.
Veja Pedro, por exemplo. O mesmo apóstolo que manda que demos razão da esperança “com mansidão e temor” (1Pe 3.15-16) também não tremeu ao dizer ao povo judeu que eles mataram o Messias (At 2.36; 4.10). E quando tentou-se silenciá-lo, respondeu com a clássica: “Importa obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5.29). Quando Simão tentou comprar o dom do Espírito Santo, Pedro não chamou para tomar um café e “dialogar”: lançou logo um “pereça tu com o teu dinheiro” (At 8.20-21).
E Paulo? Esse então escancara a falácia da “mansidão covarde” como ninguém. Chama Elimas de “filho do diabo” (At 13.10), diz aos gálatas que eles são “estúpidos” (Gl 3.1), e chega ao ponto de desejar que os falsos mestres que perturbavam os gálatas se castrassem (Gl 5.12). Tudo isso vindo do mesmo Paulo que escreveu belíssimas exortações sobre amor, paciência e mansidão. A lição é óbvia: Paulo era manso diante de Deus, mas um leão quando alguém deturpava o evangelho.
Paulo não fez campanha de diálogo inter-religioso, não chamou hereges para sentar num talk show gospel e “fazer pontes”. Pelo contrário: lançou uma maldição (anátema) sobre quem anunciasse outro evangelho (Gl 1.8-9). E antes que alguém diga “mas isso foi só naquela época”, o texto ainda repete duas vezes, só para deixar claro que não foi um surto de mau humor apostólico.
O que isso significa? Significa que um pecado, uma fraqueza ou um tropeço pode — e deve — ser exortado com paciência, mansidão e desejo sincero de restauração. Mas quando alguém prega heresia publicamente, o correto não é ficar em silêncio ou dar tapinha nas costas. É rechaçar publicamente, expor o falso mestre, chamá-lo pelo que é e, sim, humilhá-lo se for necessário, para proteger o rebanho.
Quem prefere a mansidão “fofa” e inofensiva, aquela que tolera tudo, na prática abraça um padrão humanista, não bíblico. É o mesmo padrão que não quer ofender ninguém — exceto a verdade. A Bíblia não manda ser manso com o diabo nem com falsos evangelhos; manda ser manso quando defendemos a fé e quando tratamos de restaurar irmãos que tropeçam (Gl 6.1). Mas quando a questão é defender a sã doutrina contra heresia, não existe “mansidão Nutella” que justifique calar-se.
Afinal, mansidão bíblica não é covardia — é coragem submissa a Deus. É estar disposto a virar a outra face por amor ao próximo, mas nunca virar as costas quando a verdade do evangelho está sendo atacada.
A tolerância com falsos ensinos é, de fato, a marca registrada dos que trocaram a verdade pela opinião pública e o temor de Deus pelo medo do cancelamento.
E como sempre, a Escritura segue dizendo: “Sede mansos, sim. Mas não sedes tolos.”