quarta-feira, 9 de julho de 2025

Romanos 11.32: A Soberania Insondável e a Misericórdia Ordenada de Deus


Uma análise exegética e teológica com base em Wallace, Murray, Piper, Cheung e Clark

 "Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia." (Romanos 11.32)

Romanos 11.32 ocupa um lugar culminante na argumentação de Paulo nos capítulos 9–11 da carta aos Romanos. Depois de explorar o endurecimento parcial de Israel, a salvação dos gentios e a esperança de restauração final de Israel, Paulo conclui com a declaração de que Deus encerrou (συνέκλεισεν) todos na desobediência, para que pudesse ter misericórdia de todos. Esta frase, longe de ser periférica, concentra alguns dos mais profundos mistérios do plano divino, tocando diretamente a relação entre os decretos de Deus, a liberdade humana, o pecado e a graça.

Neste capítulo, reuniremos as análises de Daniel B. Wallace, John Murray e John Piper, ampliando com a teologia de Vincent Cheung e Gordon Clark, para mostrar como o texto revela a soberania ativa de Deus sobre todas as coisas — inclusive o pecado — sem comprometer sua santidade, e como esse governo absoluto é a base para a manifestação de sua misericórdia.


✍️ Wallace: A gramática da finalidade divina

Em Greek Grammar Beyond the Basics, Daniel B. Wallace explica que o grego ἵνα (hina) com o verbo no subjuntivo muitas vezes indica propósito intencional — aquilo que Deus realmente quis alcançar. No caso de Romanos 11.32, Wallace entende que não estamos apenas diante de um resultado casual, mas de um propósito decretado por Deus: Ele encerrou todos debaixo da desobediência com o propósito de usar de misericórdia para com todos.

Para Wallace, a força do ἵνα demonstra que:

A desobediência universal não foi um acidente histórico, mas um ato soberano de Deus.

A misericórdia não é uma reação de Deus a algo imprevisto, mas o fim pretendido do plano divino.

Desse modo, o endurecimento de Israel e a incredulidade geral dos homens fazem parte de um desígnio divino coerente, cujo ápice é a manifestação da misericórdia. Este aspecto gramatical destrói qualquer teologia que veja a história da salvação como um “plano B” de Deus diante do fracasso humano.


⭐ Murray: O propósito redentor e a misericórdia

No seu clássico The Epistle to the Romans, John Murray desenvolve a ideia de que Deus, ao “encerrar a todos na desobediência”, revela um propósito redentor. Ele escreve:

“O design de Deus é fazer da miséria provocada pelo pecado o palco em que brilhará a sua misericórdia.”

Murray rejeita que Romanos 11.32 ensine universalismo (todos sem exceção sendo salvos), mas sustenta que “todos” refere-se a judeus e gentios — todos os tipos de homens, sem distinção étnica.

A grande tese de Murray é que Deus permitiu e ordenou que tanto judeus como gentios fossem incluídos na desobediência, a fim de demonstrar a misericórdia de modo mais glorioso. Assim, a dureza do coração de Israel não frustra os planos de Deus; antes, é o próprio Deus quem planejou essa dureza como parte do processo histórico que culmina na manifestação de sua graça.


 🙏Piper: Soberania providencial e adoração

John Piper, em suas pregações e escritos sobre Romanos 11, ecoa e expande a visão de Murray, com ênfase especial na soberania de Deus. Piper escreve:

 “A misericórdia de Deus não é uma ideia improvisada em resposta ao fracasso de Israel; ela é o clímax do plano de Deus que inclui a desobediência como parte de seu desígnio soberano.”

Para Piper, a lógica de Paulo leva inevitavelmente ao verso seguinte: “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!” (v. 33). A correta compreensão da soberania de Deus não gera frieza ou fatalismo, mas adoração: Deus planejou até mesmo a queda e a dureza humana para magnificar a grandeza de sua misericórdia.

Piper também ressalta que a misericórdia aqui não é universalismo, mas a abrangência do plano de Deus que inclui todos os povos, superando as divisões étnicas.


👉 Cheung: O decreto soberano e a causalidade divina

Vincent Cheung, em textos como The Author of Sin e Systematic Theology, vai mais fundo: para ele, Romanos 11.32 não apenas sugere que Deus usou a desobediência como meio, mas que Ele causou a própria desobediência, mantendo intacta Sua santidade porque Deus é a única causa verdadeira de tudo, e o mal existe para que Sua misericórdia brilhe mais.

Cheung escreve:

 “Se Deus encerrou a todos na desobediência, então a desobediência não ocorreu independentemente de Sua vontade, mas é uma consequência direta de Seu decreto eterno.”

Assim, o encerramento na desobediência não é apenas um “permitir passivo”, mas um ato positivo do decreto soberano, cujo fim é a demonstração da misericórdia. Essa visão está fundamentada na convicção ocasionalista de Cheung: Deus move todas as vontades, inclusive as rebeldes, sem que isso torne Deus pecador. Ele cita passagens como:

Provérbios 16.4: “O Senhor fez todas as coisas para atender aos seus próprios desígnios, até o ímpio para o dia do mal.”

Atos 2.23: “Este [Jesus], entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, vós o tomastes.”

Cheung afirma que negar que Deus decretou e causou a desobediência é negar a própria força do ἵνα: o objetivo da desobediência foi estabelecido desde a eternidade.


🧩 Clark: Soberania, lógica e necessidade

Gordon Clark, em Predestination e God and Evil, defende posição semelhante: Deus decretou não apenas os eventos bons, mas também os maus. Para Clark, a linguagem de Romanos 11.32 exclui qualquer visão arminiana ou molinista: se “Deus encerrou a todos na desobediência”, então a desobediência faz parte do plano eterno.

Clark afirma que Deus não é autor do pecado no sentido moral (Deus não peca), mas é o autor do mundo no qual existe o pecado — e Ele decretou o pecado para que pudesse exibir Sua misericórdia, Sua justiça e Sua graça. A relação entre decreto e responsabilidade humana permanece um mistério, mas é sustentada pela revelação bíblica.

Ele escreve:

“Não existe evento contingente para Deus; mesmo o pecado foi determinado por Ele para um fim bom.”

(Predestination, p. 53)

Assim, Clark vê Romanos 11.32 como uma declaração explícita da soberania metafísica de Deus: não apenas sobre as consequências, mas sobre as próprias causas do pecado.


🧑‍🏫 Conclusão: A profundidade do plano eterno

Ao reunirmos Wallace, Murray, Piper, Cheung e Clark, vemos um quadro coerente:

Deus decretou e causou a desobediência (Cheung e Clark);

Deus fez isso com o propósito final de demonstrar misericórdia (Wallace e Murray);

Essa soberania leva à adoração e não ao fatalismo (Piper).

O verso 32 não apresenta um Deus reagindo ao mal, mas um Deus planejando todas as coisas, inclusive o mal, para revelar Sua glória e graça.

Paulo conclui:

“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!” (v. 33)

A correta leitura de Romanos 11.32 não nos deixa com um “Deus que apenas permite”, mas com um Deus que ordena, governa e até causa todas as coisas, para que o bem maior — Sua misericórdia e glória — resplandeça.

E como diriam Cheung e Clark: negar essa causalidade divina equivale a negar a própria força do texto bíblico e a exaltar a autonomia humana, destruindo a base da fé reformada.