Por Yuri Schein
O cara parece um herege daqueles que dizem: “ah, se a palavra Trindade não está na Bíblia, então é uma doutrina falsa”. Esse tipo de raciocínio raso, infantil e quase ridículo é o mesmo que vemos na boca de quem nega o Pacto de Obras. A lógica é a mesma: se não aparece o termo técnico, a doutrina é descartada. É a teologia do dicionário, não da Escritura.
Mas a revelação de Deus não funciona assim. A palavra “Trindade” não está na Bíblia, mas a realidade trinitária é exposta de Gênesis ao Apocalipse. Da mesma forma, a expressão “pacto de obras” não precisa estar escrita para que o princípio esteja claro, repetido e martelado em cada página das Escrituras.
O Fundamento Bíblico do Pacto de Obras
Além de Gênesis 2:16-17, onde Deus impõe um mandamento claro a Adão sob pena de morte, e Romanos 5:12-19, onde Paulo apresenta Adão como cabeça federal de toda a humanidade, temos textos incontornáveis:
Oséias 6:7: “Eles, como Adão, transgrediram a aliança”. Aqui o profeta não deixa dúvidas: Adão estava sob um pacto, e sua transgressão foi quebra de aliança.
1 Coríntios 15:21-22: “Porque assim como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um homem. Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo.” Paulo reforça a representatividade federal: Adão trouxe morte, Cristo traz vida.
Gálatas 3:10-12: “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para fazê-las… O homem que praticar estas coisas viverá por elas”. Paulo está ecoando o princípio do pacto de obras: vida pela obediência, maldição pela desobediência.
Romanos 2:14-15: A lei de Deus está impressa na mente dos homens. Mesmo os gentios, sem a lei escrita, têm a obra da lei escrita em seus corações. O pacto de obras não é uma invenção arbitrária, mas uma exigência natural da justiça divina sobre toda criatura.
Levítico 18:5: “Portanto, os meus estatutos e os meus juízos guardareis; os quais, observando-os o homem, viverá por eles”. Vida condicionada à obediência perfeita.
Deuteronômio 27:26: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, não as cumprindo”. Uma falha basta para trazer condenação.
Romanos 10:5: “Moisés descreve a justiça que vem da lei: o homem que fizer estas coisas viverá por elas”. O princípio permanece: vida pela obediência, condenação pela falha.
Se o pacto de obras não existisse, Paulo teria de reinventar toda a lógica de Romanos 5 e 1 Coríntios 15. Mas é justamente o pacto de obras que dá sentido ao contraste entre Adão e Cristo. Adão quebrou a lei, Cristo cumpriu. Adão trouxe condenação, Cristo traz justificação.
Cristo, o Segundo Adão
A negação do pacto de obras é típica dos seguidores de Darby e do dispensacionalismo, que odeiam a ideia de Cristo imputar sua justiça ativa ao crente. Se não havia pacto de obras, então Cristo não cumpriu nada em nosso lugar. Logo, sua obediência perfeita não é imputada a nós. O resultado é um “Cristo mártir”, reduzido a sentimentalismo religioso, mas não o segundo Adão que viveu a vida perfeita que Adão falhou em viver.
Mas a Escritura é clara: “Porque, como pela desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um só muitos serão feitos justos” (Rm 5:19). Cristo obedeceu em nosso lugar. Isso não é um detalhe teológico periférico, mas o próprio coração do evangelho.
Negar o pacto de obras é, portanto, atacar a própria condição divina da lei. Se qualquer ser humano obedecesse perfeitamente a lei, viveria por ela (Gl 3:12). Mas nenhum homem conseguiu. Somente Cristo. Por isso, sua obediência é evangelho em ação.
As Consequências da Negação
Negar o pacto de obras não é apenas um erro acadêmico. É heresia prática. Sem pacto de obras, o evangelho perde sua lógica interna.
1. Sem pacto de obras, não há imputação da justiça de Cristo. O que sobra é apenas “perdão de pecados” sem base legal, como se Deus fosse um avô bonzinho que fecha os olhos.
2. Sem pacto de obras, não há contraste entre Adão e Cristo. A lógica federal de Paulo em Romanos 5 e 1 Coríntios 15 é destruída.
3. Sem pacto de obras, se cai em pelagianismo ou antinomismo. Ou se acredita que o homem pode cumprir por si mesmo a lei, ou se joga fora a função da lei, caindo no libertinismo. Ambos são frutos do mesmo veneno.
A Testemunha da Tradição Reformada
João Calvino já afirmava:
“Cristo suportou a pena que nos era devida e satisfez a justiça de Deus em nosso lugar.” (Institutas, II.16.10)
Isso só faz sentido se havia uma justiça real, objetiva, exigida pelo pacto de obras.
Herman Bavinck escreveu:
“A justiça de Cristo é ativa e passiva, isto é, consistiu não apenas em seu sofrimento e morte, mas também em sua obediência à lei de Deus. Essa obediência é imputada ao crente para sua justificação diante de Deus.” (Dogmática Reformada, vol. 3).
Gordon Clark foi direto ao ponto:
“Cristo obedeceu perfeitamente à lei que Adão falhou. Essa obediência não foi para si mesmo, mas para nós, e é creditada a nós pela fé. Negar isso é negar a justificação pela fé.” (What Do Presbyterians Believe?).
Francis Turretin foi ainda mais explícito:
“O pacto de obras não deve ser considerado uma ficção dos teólogos, mas uma verdade sólida da Escritura, pela qual Deus tratou com Adão não apenas como indivíduo, mas como cabeça e raiz de todo o gênero humano.” (Institutes of Elenctic Theology, 8.3.5).
Refutação ao Dispensacionalismo e ao Molinismo
O dispensacionalismo darbyano, ao negar o pacto de obras, nega a imputação ativa da justiça de Cristo. Isso resulta em um evangelho mutilado. Um Cristo que não obedece em nosso lugar é um Cristo insuficiente.
Já o molinismo cai em outro abismo. Se Deus apenas prevê cenários e coopera com decisões humanas, então a obediência de Cristo é apenas um “bom exemplo”, não o cumprimento necessário de uma aliança quebrada. O molinista, na prática, dissolve o evangelho em probabilidades.
O supralapsarianismo reformado mostra a diferença: Deus decretou tanto o pacto de obras quanto sua quebra em Adão, para que a glória de Cristo como o segundo Adão fosse revelada. Cristo não apenas morre, ele cumpre. Não apenas apaga pecados, mas imputa justiça.
Sem Pacto de Obras, Sem Evangelho
Negar o pacto de obras é negar a base da justificação. É querer um Cristo sem a lei, sem a justiça ativa, sem a obra perfeita que nos é imputada. É diluir o evangelho em misticismo barato.
O pacto de obras é a chave que liga Adão a Cristo, a queda à redenção, a lei ao evangelho. Quem não entende isso, não entende nada de teologia bíblica. Pode até falar em “Jesus” o dia inteiro, mas é um Jesus sentimental, não o Senhor da justiça imputada.
Sem pacto de obras, não há contraste entre Adão e Cristo. Sem pacto de obras, não há imputação. Sem pacto de obras, não há evangelho.