Por Yuri Schein
Se a ironia não fosse um dos temperos de Deus contra a arrogância humana, o episódio de Balaão já bastaria para nos arrancar risos de sarcasmo santo. Um profeta mercenário, contratado para amaldiçoar Israel, acaba se tornando megafone do decreto divino. O texto de Números 23.21 soa como um tapa na cara de toda hermenêutica que tenta diminuir as promessas de Deus ao Seu povo. E não é de hoje: tanto pré-milenistas quanto amilenistas tropeçam nesse versículo como se fosse uma pedra deixada propositalmente no caminho. O pós-milenismo, ao contrário, lê aqui uma das mais belas declarações sobre a natureza irrevogável da bênção de Deus para com Israel, agora entendido em Cristo, o Israel de Deus (Gl 6.16).
Balaque, Balaão e o Deus que ri dos ímpios
O pano de fundo é simples: Balaque, rei de Moabe, desesperado diante do avanço de Israel, contrata Balaão para amaldiçoar a nação. O contraste já é grotesco. Um rei impotente aposta em feitiçaria para enfrentar o povo do Deus que abriu o mar e derrubou o Egito. É como tentar apagar o sol com um copo d’água.
Balaão, por sua vez, é o típico profeta a soldo, disposto a negociar oráculos pela soma certa. Mas aqui acontece o escândalo teológico: o Espírito de Deus invade o homem e faz dele instrumento involuntário da verdade. Balaão tenta amaldiçoar, mas sua boca só consegue abençoar. Números 23.19 prepara o terreno; Números 23.21 sela o argumento.
Números 23.19: O Deus que não se arrepende
“Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa. Acaso diria Ele e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” (Nm 23.19).
Aqui, o hebraico expõe um contraste direto entre a natureza mutável do homem e a imutabilidade de Deus.
לֹא אִישׁ אֵל וִיכַזֵּב (lo ish el viyikhazev): “Deus não é homem para mentir.” O verbo kazav significa falsificar, enganar deliberadamente, quebrar a palavra.
וּבֶן־אָדָם לְהִתְנֶחָם (u-ven adam lehitnachem): “Nem filho do homem para se arrepender.” O termo nacham aqui tem o sentido de mudar de curso, voltar atrás, ceder.
A teologia sistemática se curva: Deus é imutável. Seu decreto não sofre revezes. Diferente dos homens, Ele não é escravo de circunstâncias. Assim, qualquer promessa feita a Israel não pode ser revogada. Isso, por si só, destrói toda leitura pessimista da história. O Deus que prometeu encher a terra de Sua glória (Nm 14.21) não vai se arrepender a meio caminho porque surgiram impérios, ideologias ou falsos cristianismos.
Números 23.21: O oráculo que Balaão não queria pregar
"Não viu iniquidade em Jacó, nem contemplou maldade em Israel; o Senhor, seu Deus, está com ele, e o júbilo de um rei está no meio dele.” (Nm 23.21)
A primeira vista, parece uma hipérbole teológica. Como assim Deus não viu iniquidade em Israel? O Pentateuco inteiro é um memorial dos pecados da nação! O bezerro de ouro ainda estava na memória, as murmurações no deserto ainda ecoavam. Então, o que Balaão está dizendo?
Exegese Hebraica:
לֹא־הִבִּיט אָוֶן בְּיַעֲקֹב (lo-hibit aven b’Ya’akov): “Não contemplou maldade em Jacó.” O verbo hibit (olhar atentamente) no perfeito indica uma ação deliberada: Deus se recusa a olhar. E aven significa tanto iniquidade quanto vaidade ou nulidade.
וְלֹא־רָאָה עָמָל בְּיִשְׂרָאֵל (ve-lo ra’ah amal b’Yisrael): “Nem viu opressão (ou perversidade) em Israel.” O verbo ra’ah (ver) sugere percepção judicial. E amal pode significar perversidade moral, mas também miséria resultante de pecado.
Ou seja: não se trata de negar a existência do pecado, mas de declarar a posição forense do povo diante de Deus. Israel é visto não por sua méritocracia espiritual, mas pela eleição e justificação divinas. Esse é o evangelho do Antigo Testamento: a justiça imputada.
O pós-milenismo aqui
Agora o fio de ouro: se Deus não contempla iniquidade em Seu povo, e se o júbilo de um rei está no meio dele, então Israel (agora a Igreja, o Israel espiritual em Cristo) é invencível em sua missão histórica.
O pré-milenismo vê a história como derrota, esperando um milênio terreno futuro para compensar o fracasso da igreja.
O amilenismo lê a promessa como pura realidade espiritual sem implicações históricas, reduzindo a escatologia a uma espera contemplativa.
Mas o pós-milenismo entende: o Deus que não mente (Nm 23.19) decretou a bênção irrevogável (Nm 23.21). Logo, o avanço do Reino de Cristo no tempo e espaço é inevitável.
A frase final é ainda mais devastadora:
“O Senhor, seu Deus, está com ele, e o júbilo de um rei está no meio dele.”
Qual rei? Tipologicamente, primeiro Davi. Escatologicamente, Cristo. Ou seja: a alegria real, messiânica, escatológica, já repousa no povo. Isso não é uma derrota camuflada. Isso é vitória anunciada.
Paulo ecoa Números quando diz:
“Quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas quanto à eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis.” (Rm 11.28-29)
Exatamente: irrevogáveis. É a aplicação apostólica de Números 23.19-21. Deus não revoga. Deus não muda. Deus não erra. A bênção permanece. O pós-milenismo é simplesmente a leitura fiel dessa coerência bíblica.
O sarcasmo inevitável
Diante disso, querer reduzir a promessa a um punhado de fiéis acuados, escondidos à espera do fim, é zombar do próprio Deus. É transformá-lo em homem, passível de mentira e arrependimento. É negar Números 23.19.
Em última análise, todo pré e amilenista é um Balaque moderno: tenta amaldiçoar onde Deus já abençoou. E todo pós-milenista é, ironicamente, Balaão sem querer: obrigado a dizer a verdade porque o texto não deixa outra opção.
O pós-milenismo não nasce de otimismo humano, mas da lógica implacável do decreto divino. O Deus que não muda (23.19) e não vê pecado em Seu povo justificado (23.21) já declarou: o júbilo do Rei está no meio dele. Isso significa que o Reino avança, não recua.
A questão, portanto, não é “se” o mundo será cheio da glória do Senhor, mas se você vai aceitar ou continuar como Balaque, brigando contra a maré soberana do Deus que nunca perde.
Aquele que não vê iniqüidade em Jacó (Números 23:21): Uma Exegese Pós-Milenista Contra o Pessimismo Escatológico
Se em Números 23:19 fomos lembrados de que Deus não é homem para mentir, nem filho do homem para se arrepender, o versículo 21 é uma espécie de corolário inevitável: a promessa de Deus de encher a terra com Sua glória (14:21) não pode ser revertida por nenhuma acusação externa. O texto diz:
"Não viu iniqüidade em Jacó, nem contemplou maldade em Israel; o Senhor, seu Deus, está com ele, e no meio dele se ouve o júbilo de um rei.” (Nm 23:21)
Aqui, mais uma vez, Balaão, o mercenário do Oriente, é forçado a se tornar profeta da aliança. Contra sua própria vontade, sua boca é instrumento do decreto divino. O mesmo Deus que declarou no verso 19 que não mente, aqui declara que não vê pecado em Jacó. E isso não é mera retórica, mas teologia redentiva e escatológica em estado puro.
A Exegese Hebraica: "לא הביט און ביעקב"
O hebraico do texto é crucial. A frase "לא הביט און ביעקב" significa literalmente:
“Não contemplou (hebit) iniqüidade ('aven) em Jacó.”
O verbo הביט (hebit) denota olhar com intenção, não um mero vislumbre. É olhar com atenção, considerar, pesar. Ou seja: Deus não leva em conta, não atribui, não imputa a iniquidade ao Seu povo. Isso não significa que Israel seja impecável em si mesmo, mas que está revestido pela justiça divina. Aqui vemos um eco antecipado da justificação pela fé, que Paulo depois desdobrará em Romanos 4: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado” (Sl 32:2).
O substantivo און ('aven) é usado muitas vezes no Antigo Testamento para indicar iniquidade, injustiça, futilidade, idolatria. Mas no contexto da aliança, significa que o peso real do pecado não é considerado por Deus contra Israel. Em outras palavras: a eleição e a aliança tornam a acusação impotente.
Já a segunda parte — "ולא ראה עמל בישראל" — significa: “Nem viu trabalho/maldição (ʿamal) em Israel.” O termo ʿamal carrega a ideia de sofrimento resultante do pecado, de fadiga pela maldição. O que Deus afirma aqui é que o destino da maldição não repousa sobre Israel, porque a benção soberana de Deus o separa.
Isso se conecta diretamente ao pós-milenismo: se a maldição não tem a palavra final sobre o povo da aliança, mas sim a benção, então a história não pode terminar em derrota, mas em vitória, em expansão do Reino, em terra cheia da glória de Deus (Nm 14:21).
A Relação com o Versículo 19
Note como o argumento é encadeado:
Nm 23:19: Deus não é homem para mentir.
Nm 23:20: Balaão é forçado a abençoar, pois a palavra de Deus o obriga.
Nm 23:21: Portanto, o decreto é irrevogável: Deus não imputa pecado a Jacó.
Se em 23:19 vimos a impossibilidade de Deus voltar atrás, em 23:21 vemos a razão positiva: Ele determinou abençoar Seu povo de tal forma que nenhuma acusação pode prevalecer. Isso é a linguagem veterotestamentária de Romanos 8:33 — “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica.”
Ou seja, a vitória da Igreja não é apenas escatológica, mas ontológica, decretiva. Não depende da performance moral contingente de Israel, mas da palavra imutável do próprio Deus.
Implicações Pós-Milenistas
Aqui está o ponto que os amilenistas e pré-milenistas tropeçam porque insistem em um Deus que decreta promessas mas depois falha em cumpri-las “por causa da dureza do coração humano” (como se a obstinação humana fosse maior que o decreto divino). O texto é explícito: Deus não vê iniquidade em Jacó. Isso não significa que Israel não peque, mas que Deus não permite que o pecado anule a aliança.
Se Deus não imputa pecado ao Seu povo, então a aliança não pode ser rompida. Logo, o propósito de encher a terra com Sua glória (Nm 14:21) não pode ser frustrado pela rebeldia momentânea de homens ou nações. A história inteira caminha para a vitória da benção, não da maldição.
A lógica é simples:
Deus prometeu abençoar Jacó.
Ele não é homem para mentir.
Ele não leva em conta a iniquidade do povo da aliança.
Logo, a benção é inevitável e irreversível.
Isso é pós-milenismo em estado puro: a marcha histórica do Reino rumo à consumação de todas as coisas, quando as nações serão discipuladas (Mt 28:18-20), e o “júbilo de um rei” (Nm 23:21) será ouvido em toda a terra.
A "Voz do Rei"
A parte final do versículo é teologicamente deliciosa:
"ה' אלהיו עמו ותרועת מלך בו"
— “O Senhor, seu Deus, está com ele, e o júbilo (teruʿah) de um rei está no meio dele.”
A palavra תרועה (teruʿah) pode significar tanto grito de guerra quanto clamor de festa. É a mesma usada em Josué 6 para o grito que derruba as muralhas de Jericó, mas também em Levítico 23 para a festa das trombetas. É ao mesmo tempo guerra e celebração. Aqui temos a figura do Reino: Cristo, o Rei, conduz seu povo à vitória enquanto sua presença produz júbilo e conquista.
Portanto, Nm 23:21 não é apenas uma garantia de segurança espiritual, mas também um anúncio da vitória histórica do Reino de Deus sobre o mundo. O júbilo do Rei não pode ser silenciado.
O pós-milenismo não é otimismo cego, mas realismo bíblico. Números 23:21, em continuidade com 23:19, mostra que:
A promessa de Deus não pode falhar.
O pecado não pode revogar a benção.
O Rei está presente no meio de Seu povo.
O futuro não é tragédia, mas triunfo.
Quando Balaão, inimigo pago para amaldiçoar, é forçado a proclamar isso, a ironia é completa: até os adversários da aliança confessam que não há condenação para os escolhidos. O cético moderno, o teólogo pessimista e o milenista derrotista nada mais são do que ecos atualizados de Balaque, tentando subornar profetas para amaldiçoar aquilo que Deus já abençoou.
E como o texto insiste: não há acusação que prevaleça contra o povo da promessa. Se Deus não viu iniquidade em Jacó, tampouco verá derrota em sua história, mas apenas a consumação de Sua vitória em Cristo.