Por Yuri Schein
Bleach apresenta ao espectador um universo que, à primeira vista, parece meticulosamente estruturado: há a Terra dos Vivos, a Soul Society, o Hueco Mundo, inúmeras divisões, hierarquias, organizações e regras rígidas que regem a vida e a morte. Porém, quando se observa com atenção, percebemos que toda essa aparente ordem não é outra coisa senão uma reificação da arrogância humana, uma tentativa de domesticarem o transcendental para caber nas limitações de um roteiro shonen. É uma cosmogonia em que o divino é reduzido a um espantalho de papelão, cheio de autoridade performática, mas desprovido de verdadeira soberania, onisciência e onipotência.
Na Soul Society, temos uma hierarquia de shinigamis, capitanes, vice-capitanes e subordinados. Há decretos, punições, execuções e cerimônias que lembram sistemas de governo humano misturados com ritual religioso. Mas quem realmente governa? Quem determina o destino das almas, a vida ou a morte? A resposta é ambígua e perigosamente humana. Ao invés de apresentar um Deus transcendente, soberano e absoluto, o anime nos oferece uma divindade fragmentada, diluída em regras internas, tradições e costumes de uma aristocracia espiritual que se orgulha de sua própria lei. É como se a narrativa quisesse construir algo “divino”, mas só conseguisse criar Byakuyas, Aizen e Urahara metafísicos, cada um carregando uma faceta do divino como se fosse uma autoridade parcial, desconectada do Todo.
O que Bleach faz, de maneira sutil mas consistente, é espalhar a heresia estrutural: a de que o cosmos e a moralidade podem ser governados por entidades limitadas, submetidas às leis internas de um sistema que se basta. A Soul Society não é Deus, mas atua como se fosse; Hueco Mundo não é punição eterna, mas apenas um lugar de “consequência narrativa”; os Hollow não são um reflexo do pecado original ou da corrupção do coração humano, mas criaturas com motivações simplistas que personificam o mal como um conceito manipulável. Em outras palavras, o divino se torna interpretável, negociável, e dependente da competência ou fraqueza dos personagens. Isso não é teologia, é antropocentrismo maquiado de filosofia.
A cosmogonia de Bleach reproduz um padrão antigo, familiar a qualquer estudante de história das religiões: a tentativa de domesticar Deus em estruturas hierárquicas humanas, como nos panteões pagãos da antiguidade, mas revestida de japonismo contemporâneo. Assim como os deuses gregos eram poderosos, mas caprichosos e egoístas, a Soul Society apresenta seres que julgam, punem e intervêm, mas não têm poder absoluto sobre todas as coisas, e muitas vezes suas ações dependem de esforço humano, força individual ou estratégia de batalha. Essa é a essência do erro teológico: colocar o humano no centro e reduzir Deus a um executor parcial de regras, quando a Escritura é clara em dizer que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8:28) — e não para o entretenimento dramático de uma narrativa shonen.
Mais ainda, Bleach é um laboratório de antropomorfismo divino. A energia espiritual, as Zanpakutō, os poderes de rei das almas, as transformações e os níveis de rei, vice-rei e capitão, tudo isso transforma o divino em um objeto que pode ser medido, confrontado, superado. A hierarquia da Soul Society é uma metáfora de um Deus “controlável”: o espectador aprende que, com força suficiente ou planejamento estratégico, qualquer barreira divina pode ser transposta. Em termos teológicos, isso é heresia pura: a soberania de Deus não é passível de cálculo humano, nem subordinada à competência de criaturas falíveis. Bleach, portanto, pinta Deus como um espantalho de autoridade, ameaçador na aparência, mas inerentemente impotente diante da vontade humana ou do improviso narrativo.
A narrativa reforça ainda a ilusão de autonomia humana. Ichigo, Rukia, Renji e até antagonistas como Aizen e Gin parecem ter agência absoluta, tomando decisões que impactam destinos, reconfiguram universos e mudam o equilíbrio cósmico. Mas o que isso nos diz sobre a teologia de Bleach? Que a salvação, a ordem e o caos dependem de protagonistas heroicos, e não de um Deus eterno e soberano. Essa visão é essencialmente arminiana: o poder reside na criatura, o desfecho depende da escolha, e o divino é apenas uma força adjacente, limitável e, sobretudo, contestável.
Quando se olha sob a ótica do ocasionalismo calvinista, todo o sistema de Bleach é grotesco. Cada luta, cada vitória, cada transformação só existe enquanto Deus permite; nada ocorre de forma autônoma. Mas Bleach ignora isso completamente: a causalidade é humana, a moralidade é negociável, o improvável se torna crível pela coragem ou engenhosidade do protagonista. É uma teologia auto-construída, como se o espectador fosse chamado a aceitar que o humano pode, de fato, moldar o cosmos à sua vontade, algo que, na Escritura, é absurdamente falso.
No fim, Bleach não só erra na cosmogonia, como também na ética e na teologia: cria um universo funcionalmente politeísta, onde deuses são fragmentos de poder, regras substituem decretos divinos e a criatura é o verdadeiro protagonista. O resultado é um Deus-espantalho, uma entidade que impõe autoridade performática, mas que nunca exerce soberania real, nem pune de acordo com justiça absoluta, nem governa o mundo com perfeição. O espectador se vê diante de uma caricatura do divino, uma hierarquia aristocrática de fantasia que, se fosse religião, seria politeísmo disfarçado de espiritualidade.
Em termos pressuposicionais, Bleach é uma aula de como toda cosmogonia que não reconhece a soberania absoluta de Deus inevitavelmente gera heresia. Cada Hollow que perambula, cada rei que julga, cada protagonista que decide sozinho: todos são variações de um mesmo erro fundamental — a criatura como causa real e eficaz, Deus como espectador ou coadjuvante. É a materialização de Aristóteles, do molinismo, do arminianismo e do tomismo em forma narrativa: uma teologia de espantalhos, onde a autoridade divina é reduzida a uma convenção estética.
Se fôssemos resumir em silogismos pressuposicionais:
1. Se Deus não é absolutamente soberano e todas as causas dependem Dele → A cosmogonia é herética
2. Bleach apresenta um universo onde a agência humana determina resultados → Portanto, Bleach é herético.
3. Se a verdadeira teologia exige que Deus seja único, eterno, infinito e soberano → Qualquer universo que o fragmenta em autoridades menores é falso.
4. Bleach fragmenta o divino em capitanes, rei das almas, e protagonistas heroicos → Portanto, sua teologia é falaciosa
Bleach, portanto, não é apenas entretenimento: é uma demonstração narrativa de como a fantasia humana sempre pinta Deus com um espantalho, permitindo que criaturas se tornem protagonistas, heroicas e decisivas, enquanto o verdadeiro Autor é relegado à condição de mero observador. E é exatamente por isso que, do ponto de vista calvinista, ocasionalista e pressuposicional, todo fã de Bleach está, sem perceber, aprendendo uma teologia invertida, uma mitologia onde o poder é humano e a divindade é vazia.
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