Por Yuri Schein
Quando falamos da Epopéia de Gilgamesh, não estamos diante apenas de um texto antigo ou de um fragmento literário arqueológico. Estamos diante daquilo que a humanidade faz de melhor quando abandona a revelação divina: inventar mitos confusos para tapar o buraco existencial que só Deus pode preencher. Gilgamesh, rei semideus da Suméria, herói de força sobre-humana, mas incapaz de lidar com a única realidade inescapável, a morte, é o retrato da arrogância humana vestida de poesia.
O enredo é sedutor: Gilgamesh, dois terços deus e um terço homem (olha só que matemática curiosa), enfrenta monstros, conquista glórias, e ao perder seu amigo Enkidu, entra em desespero existencial e busca a imortalidade. Não é exagero afirmar que este poema é a versão babilônica do grito humano: “não aceito que sou pó” (cf. Gn 3:19).
E, como era de se esperar, o relato também contém o eco do Dilúvio, presente em praticamente todas as culturas antigas, mas corrompido pelas lentes da idolatria. Utnapishtim, o “Noé pagão”, é o sobrevivente da inundação enviada pelos deuses caprichosos, nada de justiça, nada de santidade, apenas divindades irritadas com o barulho dos homens, como vizinhos mal-humorados. Compare com Gênesis 6–9: ali temos o juízo santo de um Deus justo, que pune a impiedade e preserva a linhagem messiânica. Em Gilgamesh, temos uma caricatura: o homem tenta enganar os deuses, e os deuses brigam entre si como fofoqueiros de aldeia. A diferença entre revelação e mito é a diferença entre diamante e cascalho.
Mas há uma ironia divina aqui: o próprio fato de culturas diversas preservarem a memória do Dilúvio mostra que o evento foi real e universal. O paganismo não cria ex nihilo; ele deforma, distorce, deturpa aquilo que Deus já revelou. Como disse Calvino, o coração humano é uma fábrica de ídolos, e Gilgamesh é apenas mais uma produção em série da idolatria mesopotâmica.
O desespero de Gilgamesh diante da morte ecoa até hoje. Seus sucessores modernos não são reis sumérios, mas cientistas com jalecos brancos que prometem “transumanismo”, “consciência digitalizada” e “biotecnologia de imortalidade”. Nada mudou. São todos ecos do mesmo grito: “não queremos morrer, mas também não queremos o Deus da vida” (cf. Jo 11:25). E como Gilgamesh, terminam sempre derrotados, agarrando uma planta de imortalidade que inevitavelmente lhes é roubada pela serpente. Ironia perfeita: até o mito admite que a morte vence o homem que rejeita o Criador.
Do ponto de vista da apologética pressuposicional, a Epopéia de Gilgamesh é um laboratório da tolice pagã. Ela mostra que o homem sem Deus pode até ter literatura, mas jamais terá verdade. Como diz Van Til, o incrédulo vive de empréstimo: até para chorar sua mortalidade ele precisa de categorias que só a cosmovisão cristã pode sustentar. Gilgamesh procura vida eterna, mas desconhece o Único que disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (Jo 14:6).
O poema acaba em frustração. O rei herói continua mortal. Nenhum feito, nenhuma glória, nenhum tijolo das muralhas de Uruk pode salvá-lo do pó. E aqui está a lição que o paganismo jamais engole: “Aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo” (Hb 9:27).
A Epopéia de Gilgamesh não é apenas a mais antiga literatura conhecida. É o mais antigo epitáfio da vaidade humana. Uma cova escavada em versos. Uma confissão não-intencional de que sem o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o homem é nada mais do que pó tentando escrever poesia contra a morte.
GILGAMESH, OS NEFILINS E A OBSESSÃO PAGÃ PELA IMORTALIDADE
Se a Epopéia de Gilgamesh já soa como um epitáfio da vaidade humana, ela também serve como um eco distorcido dos relatos bíblicos. Repare: Gilgamesh não é apresentado apenas como um homem, mas como alguém dois terços deus e um terço humano. Ora, que categoria é essa? Em Gênesis 6, temos a narrativa dos “filhos de Deus” que se uniram às filhas dos homens, gerando uma descendência híbrida, os nefilins, gigantes, guerreiros de renome. Não é de espantar que Gilgamesh seja descrito exatamente como esse tipo de ser: parte divina, parte humana, dotado de força sobre-humana, mas incapaz de transcender sua mortalidade.
Em outras palavras: Gilgamesh pode muito bem ser um dos ecos históricos dos nefilins, preservado pela memória pagã. A diferença é que, enquanto a Escritura mostra esses gigantes como expressão da corrupção da humanidade antes do Dilúvio, o paganismo mesopotâmico transforma essa corrupção em herói literário. O que Deus chama de abominação, o homem sem Deus chama de glória. Nada de novo aqui.
A obsessão de Gilgamesh pela imortalidade se conecta com esse pano de fundo: os nefilins e seus descendentes buscavam perpetuar-se na terra como senhores da história, construindo cidades e muralhas para eternizar o próprio nome (Gn 11). Gilgamesh faz exatamente isso em Uruk. Ele constrói, conquista, subjuga. Mas no fim, como todos os descendentes de Adão, ele se curva à sentença: “Pó és e ao pó tornarás”.
E então surge no poema o relato do Dilúvio. Utnapishtim, o “Noé pagão”, sobrevive em sua arca improvisada, salva-se das águas por graça de deuses confusos e contraditórios. Os deuses mesopotâmicos mandam o Dilúvio não por justiça, mas por capricho, estavam incomodados com o barulho humano. Compare com Gênesis: o Dilúvio bíblico é juízo santo contra a impiedade, não mero incômodo de divindades mal-humoradas. Utnapishtim engana os deuses; Noé anda com Deus. Em Gilgamesh, a sobrevivência é quase um truque de esperteza. Em Gênesis, é pura graça divina.
Não é à toa que tantos “teóricos alternativos” tentam ligar Gilgamesh a alienígenas, como se fosse prova de que “os deuses astronautas” visitaram a Terra. Mais uma vez, nada novo: o paganismo sempre prefere adorar ETs imaginários a reconhecer o Deus verdadeiro. Von Däniken e companhia não são diferentes dos sacerdotes de Uruk: todos eles estão tentando transformar seres finitos, anjos caídos, supostos extraterrestres, ou heróis híbridos, em objetos de reverência. A Bíblia já explicou isso: “trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens da criatura” (Rm 1:23).
E aqui entra a ironia final: se Gilgamesh é de fato uma lembrança deformada dos nefilins, ele é também um aviso. Os gigantes, os semideuses, os heróis, todos eles morreram nas águas do juízo. Não sobrou nenhum. Nem muralha de Uruk, nem planta de imortalidade, nem força sobre-humana pode resistir ao decreto divino. E, como nos dias de Noé, o mundo moderno está repetindo a mesma arrogância: buscar imortalidade fora de Cristo. Seja no transumanismo, seja na idolatria científica, seja na ficção alienígena, o grito é o mesmo: “não queremos morrer, mas não queremos Deus”.
Mas a resposta bíblica é imutável: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11:25). Gilgamesh morreu. Seus muros ruíram. Sua epopeia é apenas um monumento à futilidade. Mas Cristo ressuscitou. Ele não deixou poema, deixou um túmulo vazio.
Eis a diferença: o paganismo canta sua derrota em versos épicos. O cristianismo proclama sua vitória em um fato histórico.
GILGAMESH, BABEL E O ESPÍRITO DOS IMPÉRIOS
Se a Epopéia de Gilgamesh revela a vaidade humana diante da morte, ela também expõe o espírito de Babel: a tentativa de eternizar o nome do homem através de impérios, muralhas e obras monumentais. Quando o poema insiste em descrever a grandiosidade de Uruk, suas muralhas imensas, seus templos dedicados aos deuses, não estamos diante apenas de uma cidade antiga, mas do protótipo de todas as civilizações que ousaram competir contra o Criador.
Uruk é Babel em miniatura. E quem está por trás desse espírito? Nimrod, o “poderoso caçador diante do Senhor” (Gn 10:9). Assim como Gilgamesh, Nimrod encarna a figura do semideus, do herói rebelde, do construtor de impérios que pretendem substituir Deus. A tradição judaica, inclusive, chega a identificar Gilgamesh com o próprio Nimrod e, mesmo que isso seja especulativo, a semelhança é gritante.
O projeto de Nimrod em Babel era claro: “façamos para nós um nome” (Gn 11:4). O projeto de Gilgamesh em Uruk era o mesmo: erguer muros eternos que proclamassem sua glória. E o projeto de todo império subsequente Egito, Babilônia, Roma, até os projetos globalistas modernos é sempre a mesma repetição da insanidade: construir eternidade sem Deus.
O resultado é sempre idêntico. Babel foi confundida e dispersa. Babilônia foi reduzida a ruínas. Roma caiu. A ONU, a União Europeia e qualquer tentativa contemporânea de “unidade global” nada mais são do que a versão high-tech da torre de tijolos de Gênesis 11. Gilgamesh construiu muralhas. Hoje, os homens constroem satélites, redes digitais, biotecnologia e inteligência artificial. Mas a lógica não mudou: é a velha tentativa de abolir a morte sem reconhecer o Senhor da vida.
Do ponto de vista pressuposicional, isso mostra a estupidez de toda cosmovisão não-cristã. O paganismo canta em poemas, o secularismo escreve em tratados de ciência, mas ambos são Babel travestida: autonomia humana contra soberania divina. Como diria Vincent Cheung, a humanidade continua sendo “um cadáver espiritual que tenta maquiar a própria podridão”.
E veja a ironia: até mesmo o poema de Gilgamesh, exaltando o poder humano, termina com a confissão de derrota. Ele falha em obter imortalidade, retorna de mãos vazias, e a planta da vida é roubada por uma serpente. O Espírito Santo, por meio desse detalhe, parece zombar do paganismo: o homem rejeita o Deus da vida e, no fim, é sempre enganado pela serpente.
Essa é a linha ininterrupta da história: Gilgamesh, Nimrod, Faraó, Nabucodonosor, César, Napoleão, Hitler, a ONU. Todos são ecos da mesma rebelião. Todos tentaram construir eternidade com tijolos de pó. Todos foram reduzidos a pó pelo decreto divino.
Enquanto isso, o único Rei que venceu a morte não construiu muralhas de tijolos, mas uma Igreja viva. Não levantou torres contra o céu, mas desceu do céu para habitar entre nós. Não escreveu sua glória em tabletes de argila, mas em corações regenerados. E, ao contrário de Gilgamesh, Ele não fracassou diante da serpente, mas esmagou sua cabeça (Gn 3:15).
Eis a grande lição: Gilgamesh, Babel e todos os impérios humanos são epitáfios literários da vaidade. Cristo é o único Reino eterno. O poema sumério termina em pó. O evangelho termina em ressurreição.
GILGAMESH E A BABILÔNIA APOCALÍPTICA: O PRÓLOGO DA QUEDA FINAL
A Epopéia de Gilgamesh, no fundo, não é apenas um poema antigo. É um prefácio profano daquilo que o Apocalipse vai denunciar de forma definitiva: a Babilônia, a grande meretriz (Ap 17–18). O espírito que construiu Uruk, que levantou Babel, que ergueu Roma, é o mesmo que João vê em sua visão: a cidade prostituída que embriaga as nações com sua idolatria e arrogância.
A Babilônia apocalíptica não é apenas uma cidade histórica, mas o símbolo supremo da civilização humana sem Deus. É a soma de todos os impérios e projetos pagãos. Gilgamesh buscava a imortalidade com seus muros. Nimrod buscava eternidade com sua torre. Roma buscava eternidade com sua glória imperial. A modernidade busca eternidade com ciência, tecnologia e globalismo. Tudo isso é a Babilônia em mutação, sempre se maquiando, sempre repetindo a mesma mentira: “Podemos vencer a morte sem Cristo”.
João descreve essa Babilônia como ricamente adornada, embriagada, poderosa, mas destinada à destruição em uma única hora (Ap 18:10). Gilgamesh acreditava que suas muralhas de Uruk seriam eternas; Deus ri. Nimrod acreditava que sua torre tocaria os céus; Deus desceu e confundiu. Roma acreditava que era o império eterno; Deus a derrubou. A ONU acredita que pode unificar o mundo; Deus reserva sua queda para o juízo final. O paganismo tem muitos nomes, mas um só epitáfio: “Caiu! Caiu a grande Babilônia!” (Ap 18:2).
E veja o contraste magistral: Gilgamesh tem sua “planta da vida” roubada por uma serpente. A Babilônia do Apocalipse é embriagada pela serpente antiga, Satanás, que a seduz até o fim. Mas Cristo, o verdadeiro herói, não tem sua vida roubada, Ele a entrega voluntariamente e a retoma em ressurreição. A ironia é completa: o paganismo sempre termina derrotado pela serpente que idolatra, enquanto Cristo a derrota esmagando sua cabeça.
Aqui está a diferença fundamental entre o poema sumério e a revelação bíblica. A Epopéia de Gilgamesh é um grito de desespero: o homem morre, o herói fracassa, a serpente vence. O Apocalipse é um hino de vitória: Cristo vive, Seu povo reina, a serpente é lançada no lago de fogo. Um texto é epitáfio. O outro é coroação.
E a aplicação é clara: quem seguir Gilgamesh, Nimrod, Roma ou a Babilônia moderna terá o mesmo destino deles: pó, ruína e juízo eterno. Quem seguir o Cordeiro que venceu a morte terá vida eterna. O contraste é inescapável. Não existem “heróis imortais” fora de Cristo. Não existem muralhas eternas fora da Nova Jerusalém.
A ironia final é que o maior épico pagão da antiguidade, exaltando a vaidade humana, termina como introdução não-intencional ao maior épico divino da eternidade: o triunfo do Cordeiro. O primeiro é uma história sobre homens tentando ser deuses e fracassando. O segundo é a história do Deus que se fez homem e venceu.
Por isso, a Epopéia de Gilgamesh é útil, mas não como os seculares imaginam. Ela serve como testemunha contra o paganismo: um memorial literário do fracasso humano. É a primeira página do livro da vaidade. O Apocalipse é a última página do livro da soberania.
E, no fim, o veredito já foi dado: “Os reis da terra choram, mas os santos se alegram, porque Deus julgou a grande Babilônia” (Ap 18:20). Gilgamesh buscou glória e encontrou pó. Cristo desceu à morte e ressurgiu em glória. A escolha é entre Uruk e a Nova Jerusalém.
GILGAMESH RELOADED: DO ÉPICO SUMÉRIO AO TRANSUMANISMO POP
A humanidade nunca deixou de escrever a mesma epopeia. O que começou em Uruk, ecoou em Babel, brilhou em Roma e foi denunciado em Apocalipse, hoje aparece de terno corporativo em conferências do Vale do Silício, ou com capa e collant nos cinemas da Marvel. Gilgamesh nunca morreu: ele só trocou o barro da Suméria pelos circuitos de silício.
A Epopéia antiga mostrava um rei semideus buscando imortalidade e fracassando. O transumanismo moderno repete o mesmo enredo, mas com tecnologia no lugar de mitologia. Cientistas prometem “vencer a morte” através da criogenia, da transferência de consciência para máquinas, da edição genética. Empresas como Neuralink, da moda, são os novos templos de Uruk. Só mudou o figurino. O grito continua: “Não aceitamos morrer, mas também não aceitamos o Deus da vida.”
E a cultura pop é o evangelho ilustrado desse paganismo. O que são os super-heróis da Marvel e da DC senão nefilins modernos? Semi-deuses com força sobre-humana, imortais, guerreiros de renome. Gilgamesh não está morto, ele foi reciclado em Superman, Thor, Capitão América. Hollywood vende a mesma fantasia: homens transformados em deuses que nunca precisam enfrentar o pó. É a idolatria antiga, só que embalada com efeitos especiais em 4K.
E aqui está a ironia apocalíptica: enquanto os homens aplaudem os heróis digitais e se encantam com a promessa de “evolução tecnológica rumo à imortalidade”, a realidade permanece a mesma, todos morrem. Não há laboratório que revogue Hebreus 9:27. Não há algoritmo que apague Romanos 6:23. O salário do pecado continua sendo a morte. Gilgamesh pode se chamar Elon Musk, Yuval Harari, ou Capitão América, mas o fim é sempre pó.
A Bíblia já antecipou isso. Apocalipse mostra que a Babilônia do fim não é um templo de barro, mas um império adornado de luxo, comércio global, tecnologia e feitiçaria espiritual (Ap 18:23). Traduzindo: Big Tech, Big Pharma, Big Money, tudo unido pelo mesmo espírito de Babel. O transumanismo é apenas a versão “high-tech” da velha tentativa de roubar a árvore da vida sem passar pela cruz de Cristo.
E a ironia é que até os filmes, sem querer, admitem a futilidade. Quantos heróis superpoderosos terminam em tragédia? Quantos “imortais” descobrem que não podem escapar da dor, do vazio, do juízo? A cultura pop é uma parábola involuntária do fracasso pagão. Os roteiristas escrevem Gilgamesh sem perceber.
Enquanto isso, o evangelho continua proclamando a única resposta: não há transumanismo, não há nefilim, não há super-herói que dê conta da morte. Somente o Deus-homem que desceu, morreu e ressuscitou. Ele não precisou de muros, nem de arcas improvisadas, nem de plantas mágicas, nem de laboratórios. Ele venceu porque é a Vida em si mesma.
Portanto, a escolha é simples: ou você continua aplaudindo os Gilgameshes reciclados da modernidade, sejam eles reis da Suméria, CEOs do Vale do Silício ou super-heróis de Hollywood, ou você se curva diante do verdadeiro Rei que derrotou a morte. Um deles termina em pó, o outro em glória eterna.
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