por Yuri Schein
Há uma expressão que deveria ser tatuada na testa de cada cristão que ousa falar em “vida vitoriosa”: Simul Justus et Peccator. Simultaneamente justo e pecador. A fórmula de Lutero não é poesia teológica para enfeitar seminário, mas a confissão mais honesta e sangrenta da realidade espiritual humana. Nós somos justos porque a justiça de Cristo nos foi imputada — não injetada, não infundida, não pingada em doses homeopáticas como pensam os católicos romanos, mas colocada em nossa conta como um depósito divino que jamais poderá ser estornado. E, ao mesmo tempo, somos pecadores, miseráveis, cheios de falhas, tropeçando no mesmo pecado que juramos nunca mais cometer, pecadores tão evidentes que se não fosse a justiça alienígena de Cristo, estaríamos todos condenados ao inferno em tempo integral.
O que essa frase destrói de cara? Primeiro, a arrogância farisaica dos que fingem perfeição. Aquelas figuras que desfilam pelas igrejas com ares de superioridade moral, como se a santificação os tivesse transformado em anjos encarnados. Balela. A santificação é real, mas nunca absoluta nesta vida. Todo cristão é uma contradição ambulante: no íntimo, unido a Cristo, regenerado, habitado pelo Espírito; mas na carne, uma oficina de pecados, desejos deturpados e pensamentos impronunciáveis. Paulo sabia disso quando, em Romanos 7, gritou em desespero: “Miserável homem que eu sou!”. E este não era um descrente, era o apóstolo inspirado. O simul justus et peccator é a explicação: Paulo era justo em Cristo, mas ainda pecador em si mesmo.
Segundo, essa verdade demole o molinismo e todo humanismo travestido de teologia. O molinista dirá que Deus apenas previu quem creria, que a liberdade humana é soberana, e que a salvação depende, em última instância, de você mesmo apertar o botão da fé. Mas se a salvação dependesse de mim, eu estaria perdido antes do café da manhã. Se a perseverança fosse fruto de meu esforço, eu já teria largado a corrida há muito. O molinismo é apenas pelagianismo de terno e gravata: uma confiança idólatra na capacidade humana. O simul justus et peccator é um tapa na cara dessa ilusão. Nós não temos nada em nós mesmos para oferecer a Deus — nem fé, nem obras, nem perseverança. Tudo é graça, decretada, aplicada e preservada por Ele.
Terceiro, essa fórmula aniquila qualquer noção romântica de “progresso espiritual” como se fosse uma escada linear rumo à perfeição. O cristão não progride como quem sobe degraus; ele cambaleia, tropeça, cai, levanta, e mesmo assim chega ao final porque é carregado pelos ombros do Bom Pastor. Lutero tinha razão ao ridicularizar os místicos que falavam em estados superiores de pureza nesta vida. É ironia divina: o verdadeiro santo é aquele que mais reconhece o próprio pecado. Quanto mais próximo de Deus, mais a luz revela a sujeira do coração.
Portanto, ser simultaneamente justo e pecador não é contradição lógica, mas paradoxo existencial decretado pelo próprio Deus. Justo declarado pela imputação de Cristo, pecador experimentado na carne mortal. Aqui entra a ironia da santidade: quanto mais santo diante de Deus, mais pecador nos sentimos diante dos homens.
Eis a beleza sarcástica do evangelho: Deus olha para um miserável como eu e declara, com voz de tribunal eterno, “Justo!”. O diabo pode protestar: “Mas ele peca, ele cai, ele mente, ele duvida!”. E Deus responde: “Cale-se, Satanás, porque a justiça do meu Filho está sobre ele. Sim, ele é pecador. Mas ele é justo em meu tribunal. Ele é, ao mesmo tempo, justo e pecador”.
Esse é o evangelho que não cabe em mentes moralistas nem em sistemas sinergistas. É loucura para o legalista que pensa acumular méritos; é escândalo para o místico que sonha em pureza perfeita nesta vida; é intolerável para o molinista que acredita na liberdade humana autônoma. Mas é bálsamo para o cristão que olha no espelho e vê um pecador fracassado, e mesmo assim pode dizer com confiança: “Em Cristo, sou justo”.
A vida cristã não é um concurso de virtudes, mas a humilhação constante de viver nessa tensão. Somos mendigos vestidos com roupas reais. Somos cadáveres animados pela vida de Cristo. Somos, como disse Lutero, justos e pecadores ao mesmo tempo. E se isso soa contraditório, parabéns: você começou a entender a profundidade da graça.