sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O ENDURECIMENTO DO CORAÇÃO DE FARAÓ | Robert L. Reymond (Trecho da Teologia Sistemática)


Durante os eventos que conduziram ao êxodo do Egito Deus retratou a si próprio como Aquele que “fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego” (Êx 4.11). Ele ainda dispôs cada detalhe do evento do êxodo para realçar a grande verdade salvífica de que é ele, absolutamente, quem tem que tomar a iniciativa e salvar seu povo escolhido, para que esse seja salvo, pois que tal povo era absolutamente incapaz de salvar a si mesmo. Ao longo de seu diálogo com Moisés antes do êxodo de Israel do Egito, Deus declarou que endureceria o coração de Faraó no decorrer do curso das dez pragas precisamente para  (ver o לְמַעַן, lemaʻan, “a fim de”, em Êx 10.1; 11.9) “multiplicar” seus sinais de maneira que pudesse colocar seu soberano poder na mais arrojada libertação possível, a fim de que ambos Egito e Israel aprendessem que ele é Deus. Essa repetida demonstração do poder soberano desse, informa-nos o texto de Êxodo 3–14, Deus efetuou por meio de seu repetido endurecimento do coração de Faraó. Para alegar que a atividade de endurecimento por Deus nessa narrativa deve ser vista somente como um endurecimento reacionário, condicional e judicial em vez de um endurecimento mais definitivo, discriminador e distinguidor, alguns teólogos argumentam que Deus endureceu o coração de Faraó somente depois de Faraó já ter endurecido seu próprio coração. Entretanto, uma cuidadosa avaliação dos dados bíblicos demonstrará que nada há no contexto inteiro de Êxodo que sugira que essa é a melhor abordagem a tal crux interpretum. Inquestionavelmente, é verdade que Faraó já possuía um coração de pecador antes da ocorrência, e também é verdade que somos informados três vezes de que Faraó endureceu seu coração, porém, esses fatos sozinhos não nos requerem que devamos dizer que Faraó necessariamente teria endurecido o coração contra Israel depois do primeiro confronto (Êx 7.6–13). Ele poderia com igual facilidade e prontidão, na providência de Deus, haver sido convencido pelo primeiro confronto de que a melhor sabedoria ditava que deixasse Israel ir. Um exame cuidadoso do texto bíblico revelará não apenas que é dito que Deus endureceu o coração de Faraó, mas também que por duas vezes Deus declarou a Moisés, ainda antes da série de confrontações entre esse e Faraó começar, que endureceria o coração de Faraó “e [por este meio] multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas” (Êx 4.21; 7.3). Então,  na primeira vez em que se diz que o coração de Faraó era duro, o texto declara explicitamente que se deu assim “como o SENHOR tinha falado” (Êx 7.13), indicando claramente que a dureza do coração de Faraó sucedeu devido à prévia promessa de Deus de o endurecer. E a primeira vez que se diz que Faraó “endureceu o seu coração”, mais uma vez somos informados de que assim aconteceu “como o SENHOR tinha dito” (8.15; veja ainda 8.19; 9.12, 35). Mais tarde, em Romanos 9, Paulo declararia que nessa atividade de endurecimento Deus estava meramente exercendo seu soberano direito enquanto Oleiro para fazer com o que é seu conforme lhe aprouvesse (Rm 9.17–18, 21). Com efeito, no contexto do Êxodo, Deus declarou a Faraó que a razão por trás de ele levantar Faraó e o colocar no trono do Egito (ou “preservá-lo” no trono, como alguns tradutores interpretam o hebraico) foi para mostrar seu poder através dele e para proclamar o nome dele Deus por toda a terra (Êx 9.16; veja também Rm 9.17). Tanto por Êxodo quanto por Romanos fica patente que Faraó e o Egito estavam à disposição de um Soberano absoluto. 

[...]

Em Romanos 9, em virtude dos altos privilégios de Israel como o povo de Deus do AT e ainda do ponto atingido por Deus na preparação deles para a vinda do Messias, Paulo aborda a anomalia da rejeição oficial de Cristo por aquele. Ele trata dessa questão nesse ponto por dois motivos: primeiro, ele está ciente de que, se a justificação é pela fé somente (como ele havia argumentado anteriormente), com a raça sendo irrelevante, poder-se-ia perguntar: “O que é feito então das promessas todas que Deus fez a Israel enquanto nação? Não tem elas se provado ineficazes?” Ele sabe que, se não puder responder a tal pergunta, a integridade da Palavra de Deus será posta em dúvida, ao menos nas mentes de alguns. Isso, por sua vez, levanta a segunda possível pergunta: “Se as promessas de Deus se provaram ineficazes para Israel, que segurança tem o cristão de que aquelas promessas divinas implícitas na grande teologia de Romanos 3–8 e feitas para ele não se provarão ineficazes no final?” Consequentemente, ele aborda a questão da incredulidade de Israel. Em uma frase, sua explicação é esta: As promessas de Deus a Israel não falharam, porque Deus nunca prometeu salvar a todo israelita; antes, Deus prometeu salvar o (verdadeiro) “Israel” eleito dentro de Israel (Rm 9.6). Ele prova isso sublinhando o fato de que desde o início nem toda a semente natural de Abraão era considerada por Deus como “filhos de Abraão” — por exclusão, Ismael não foi um filho da promessa, e isso pelo arranjo divino eletivo soberano (9.7–9). 

Ora, poucos judeus nos dias de Paulo teriam tido muita dificuldade com a exclusão de Ismael do gracioso concerto de Deus. Contudo, alguém poderia ter insistido, à guisa de argumento, que a rejeição de Ismael como “filho” de Abraão foi devido ao fato de que, conquanto fosse a semente de Abraão, ele era igualmente o filho de Hagar, a serva, e não o filho de Sara, e ao fato de que Deus sabia que ele “perseguia ao que nasceu segundo o Espírito” (Gl 4.29, ARA; vide Gn 21.9; Sl 83.5–6). Em outras palavras, poder-se-ia afirmar, Deus fez distinção entre Isaque e Ismael, não por causa de uma eleição divina soberana do primeiro, mas porque eles tinham duas mães terrenas diferentes e ainda devido à subsequente hostilidade de Ismael (divinamente prevista) para com Isaque. O fato de duas mães é suficientemente verdadeiro, e tal fato deveras não está destituído de alguma significância figurada, como o próprio Paulo argumenta em Gálatas 4.21–31. Mas Paulo percebe de maneira clara que o princípio operativo na seleção de Isaque em detrimento de Ismael é o da discriminação divina soberana e não aquele fundado em circunstâncias humanas. Para que seu leitor não perca de vista o princípio eletivo que governou a escolha de Isaque (e todo o restante dos salvos), Paulo fortalece sua posição passando à consideração do caso de Jacó e Esaú. Aqui não havia duas mães. Tinham eles um pai (Isaque) e uma mãe (Rebeca) e, na verdade, ambos os meninos eram gêmeos, sendo mesmo Esaú o mais velho — como Ismael antes dele — e, assim, aquele a quem normalmente seria mostrado o tratamento preferencial reservado ao filho primogênito. De mais a mais, a discriminação divina foi prévia ao nascimento deles, antes de qualquer um dos dois haver feito o bem ou o mal. Note Romanos 9.11–13: 

"Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O maior servirá o menor. Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú." 

Fica claro que, para Paulo ambas eleição (“amei a Jacó”) e reprovação (“odiei a Esaú”) devem ter sua origem identificada no soberano decreto divino de discriminação entre os homens. 

Como Romanos 9.13 é uma citação de Malaquias 1.2, 3, o qual foi escrito no final da história canônica do AT, o teólogo arminiano sustenta que aqui a eleição de Jacó e a rejeição de Esaú, ambas por Deus, são tratamentos dados a nações e devem ter sua origem identificada na presciência de Deus quanto à existência pecaminosa de Edom e o tratamento histórico depreciativo de Israel (Ez 35.5). Porém, pelas três razões subsequentes tal interpretação introduz o elemento do mérito humano, elemento estranho ao argumento inteiro de Paulo em Romanos 9 e que distorce totalmente o ponto central. 

a. O contexto de Malaquias é contrário a isso. O que o profeta está querendo dizer é justamente que, depois da eleição de Jacó por Deus no lugar de Esaú, Deus continuou a amar a Jacó, a despeito da história de Jacó (Israel) ser similar à de Esaú (Edom) até onde diz respeito à sua fidelidade pactual, e a rejeitar Esaú em virtude da impiedade desse. 

b. Introduzir no pensamento de Paulo aqui, no menor grau que seja, a noção de mérito ou demérito humano como a base para as relações de Deus com os gêmeos é ignorar a óbvia afirmação dele: “não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito a ela .… ” 

c. Introduzir no pensamento de Paulo aqui a noção de mérito ou demérito humano como a base das relações de Deus com Jacó e Esaú é igualmente tornar supérflua e irrelevante a seguinte objeção antecipada ao argumento de Paulo, a qual ele captou nas perguntas: “Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus?” Ninguém sequer pensaria em acusar a Deus de injustiça se ele tivesse se relacionado com Jacó e Esaú tendo por base estritamente o mérito ou demérito humano. Porém, é precisamente porque Paulo havia declarado que Deus se relacionou com os gêmeos baseado, não em mérito humano, mas exclusivamente em conformidade com seu próprio propósito eletivo, que se adiantou à questão: “Por que isso não torna a Deus injusto e arbitrariamente autoritário?” É de se duvidar que um arminiano alguma vez encarará a pergunta a que Paulo se antecipa aqui simplesmente pelo fato de a doutrina arminiana da eleição estar fundada na presciência divina da fé e boas obras dos homens. Somente o calvinista que insiste que Deus, “para o louvor da sua gloriosa graça”, se relaciona com os eleitos “de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa” (CFW, III/v), é quem enfrentará essa acusação específica de que Deus é injusto. 

Também aprendemos por Romanos 9.11–13 que o princípio eletivo no propósito eterno de Deus serve ao princípio graça que governa toda a autêntica salvação e só é compatível com esse. Observe a expressão de Paulo, “para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama”. Aqui vemos o nexo entre a graça e o propósito eletivo divinos exibidos de modo dramático na discriminação que Deus fez entre Jacó e Esaú, discriminação que, nota Paulo, ocorreu “não tendo eles ainda [ìÞðù, mēpō] nascido, nem tendo feito bem ou mal” (veja Gn 25.22–23). Paulo então explica o porquê da discriminação divina com estas palavras: “não por causa das [ἐê, ek] obras, mas por [ἐê, ek] aquele que chama [para a salvação]” (Rm 9.12). Isso equivale a dizer “não segundo as obras, mas de acordo com a graça que elege”. Paulo ensina aqui que o propósito eletivo de Deus não é, como no paganismo, “uma sina cega e indecifrável”, a qual “é um mistério impessoal, pairando mesmo acima dos deuses”, mas sim que ele serve ao inteligível propósito de “trazer à luz o caráter gratuito da graça”. Na verdade, Paulo mais tarde faz referência à “eleição da graça” (Rm 11.5). O resultado final de tudo significa exatamente isto: “Se eleição incondicional, então graça; se nenhuma eleição incondicional, então nenhuma graça!” Dito de outra maneira: Dizer “graça soberana” é realmente expressar uma redundância, visto que ser absolutamente gracioso para com a criatura desmerecedora daquela exige que Deus seja soberano em sua exibição distributiva dela. 

Em Romanos 9.15–18 e 9.20–23 Paulo responde a duas objeções a seu ensino sobre a eleição divina, que ele estrutura em forma de perguntas: (a) “Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus?” (9.14) — a questão da justiça (ou equidade) divina — e (b) “Por que se queixa ele ainda? Pois, quem resiste à sua vontade?” (9.19, ARA) — a questão da liberdade humana. Em resposta a ambas as objeções ele simplesmente apela ao direito absoluto e soberano de Deus de fazer com o homem como bem quiser, a fim de alcançar seus próprios fins santos. 

Em Romanos 9.15–18, em resposta à primeira pergunta (aquela sobre a justiça ou equidade divina), contrastando Moisés — o exemplo que ele dá do homem eleito em cujo proveito Deus havia soberanamente determinado mostrar sua misericórdia (v. 15; vide ainda v. 23) — e Faraó — o exemplo do não-eleito a quem Deus tinha soberanamente determinado levantar para (ὅðùò, hopōs) exibir seu poder por meio daquele e anunciar seu nome em toda a terra (v. 17; veja também v. 22), Paulo primeiro declara: “[A mercê salvífica] não depende do desejo ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus” (9.16, NVI). Por esse comentário Paulo deixa claro que os procedimentos salvíficos de Deus com os homens estão baseados em considerações eletivas e decretivas sem levar em conta o querer ou agir humanos (vide ainda Jo 1.13). 

Então Paulo conclui: “De modo que ele faz misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer” (v. 18, BJ), respondendo à pergunta respeitante à justiça divina em vista da atividade eletiva e reprovativa de Deus (veja 9.11–13) com um apelo sem rodeios ao soberano direito de Deus de fazer com homens e mulheres conforme lhe apraza, para que possa exibir a verdade de que todo bem espiritual no homem é fruto apenas da graça divina. Então em Romanos 9.20–23, OL, respondendo à segunda pergunta (aquela sobre a liberdade humana), depois de sua repreensão: “Quem é o homem ... para criticar Deus?”, Paulo emprega a familiar metáfora vetotestamentária do oleiro e do barro (veja Is 29.16; 45.9; 64.8; Jr 18.6) e pergunta: “Não terá ele [o oleiro] o direito de usar o mesmo barro [a humanidade considerada genericamente] para fazer um belo objecto de ornamentação e um outro de uso corrente?” 

Paulo, naturalmente, espera uma resposta afirmativa a tal pergunta retórica. Ele está ensinando (1) que o oleiro soberanamente faz ambos os tipos de vasos, e (2) que ele faz os dois do mesmo barro. A metáfora dá a entender claramente que a determinação da natureza e finalidade de um dado vaso — seja para uso nobre ou para uso comum — é o direito soberano do oleiro, sem qualquer consideração para com a condição anterior do barro. Isso sugere, por seu turno, que Deus soberanamente determinou a natureza e finalidade tanto do eleito quanto do não eleito, com o fito de levar a cabo seus próprios fins santos, desconsiderando qualquer condição prévia que possa ou não possa ser inerente naqueles (veja de novo 9.11–13). Em minha opinião, Provérbios 16.4 expressa com competência a intenção da metáfora: “O SENHOR fez todas as coisas para atender aos seus próprios desígnios, até o ímpio para o dia do mal”. De modo que aqui Paulo simplesmente apela outra vez ao soberano direito de Deus de fazer com homens e mulheres conforme for do seu agrado, a fim de realizar seus próprios fins santos. E Paulo registra seu apelo à soberania de Deus sem reserva, mesmo entendendo plenamente que “o homem que não compreende as profundezas da sabedoria divina, nem as riquezas da eleição, que quer viver somente em sua crença na não-arbitrariedade de suas próprias obras e moralidade, só pode ver arbitrariedade na liberdade soberana de Deus”. Tal aspecto da metáfora do oleiro põe ênfase, pois, na vontade divina como a causa única, definitiva e determinante para a distinção entre eleito e não eleito. 

Em suma, a Palavra de Deus não falhou com respeito a Israel, argumenta Paulo, visto que os procedimentos de Deus para com os homens não são, em última análise, determinados por qualquer coisa que eles façam, mas sim pelo próprio propósito discriminador de Deus. Portanto, os cristãos também podem ficar seguros de que, havendo Deus posto neles seu amor desde a eternidade toda por seu soberano arranjo propositado, nada será capaz de separá-los do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor (Rm 8.28–39). 

Para muita gente, mesmo cristãos, esse ensino levanta a questão da arbitrariedade em Deus. Até Geerhardus Vos, comentando Romanos 9.11–13, reconhece “o risco de expor a soberania divina à acusação de arbitrariedade” que Paulo estava disposto a correr para ressaltar o fato de que a eleição graciosa de Jacó (e a correspondente reprovação de Esaú) foi decidida antes (aliás, eternamente antes) do nascimento dos irmãos, antes de qualquer um dos dois haver feito bem ou mal. Os teólogos arminianos poupariam os leitores de Vos das palavras “o risco de” e simplesmente declarariam que o entendimento reformado da eleição deveras expõe Deus à acusação de arbitrariedade em suas relações com os homens. O que se pode dizer em resposta a essa acusação? O entendimento reformado da eleição (o qual, insistiremos, é igualmente o entendimento paulino da eleição) imputa arbitrariedade a Deus quando afirma que esse discriminou entre homem e homem antes de eles nascerem (não é o que Paulo diz?), completamente sem levar em conta quaisquer condições ou causas (ou a ausência dessas) neles (não é isso o que Paulo quer dizer com as frases “não por causa das obras” e “não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal”?)? 

Como diria Paulo (9.14): “De maneira nenhuma!” Os procedimentos de Deus para com os homens jamais são arbitrários, se pelo termo “arbitrário” os arminianos querem dizer escolher ou agir de um modo em um dado momento e de outro modo em outro, isto é, vacilante ou inconsistentemente, ou escolher ou agir sem levar em conta qualquer norma ou razão, em outras palavras, de maneira caprichosa. Os pensadores reformados negam que imputam a Deus semelhante comportamento. Eles insistem que Deus sempre age de uma forma congruente com sua prévia e estabelecida discriminação entre os homens, e que sua prévia e estabelecida discriminação entre os homens foi sabiamente determinada nos interesses do princípio graça (vide Rm 9.11–12; 11.5). Como Paulo reconhecia que o grau, por menor que fosse, ao qual se permite ser o fator decisivo na recepção e desenvolvimento dos benefícios subjetivos da graça para a transformação de um indivíduo “detrai na mesma proporção o monergismo da graça divina e a glória de Deus”, ele chama a atenção para a “soberana discriminação entre homem e homem” feita por Deus “para colocar a ênfase apropriada na verdade de que somente sua graça é a fonte de todo bem espiritual a ser achado no homem”. O que significa justamente dizer que, se Deus escolheu o modo que escolheu, da infinita profundidade das riquezas de sua sabedoria e ciência (11.33), a fim de ser capaz de manifestar sua graça (9.11), então ele não escolheu de maneira arbitrária ou caprichosa. Em outras palavras, a condição governante do motivo para sua escolha do modo que escolheu não precisa estar na criatura. (De fato, pela própria natureza do caso a condição não podia estar na criatura. Se estivesse, a criatura seria o agente determinante na salvação e com isso se tornaria, para todos os efeitos, Deus.) Se houve uma sábia razão em si mesmo para escolher o modo que escolheu (e houve, a saber, para que pudesse criar as condições para a exibição de sua graça como a só fonte de todo bem espiritual nos homens), logo ele não escolheu caprichosamente. Definitivamente, “pode haver muitos outros motivos [ou seja, razões] para a eleição, desconhecidos e incognoscíveis a nós”, é verdade. Contudo, como Vos nos lembra, “essa única razão nós conhecemos sim, e ao conhecê-la nós simultaneamente conhecemos que, sejam quais forem as outras razões existentes, elas nada têm a ver com qualquer condição meritória ética dos objetos da escolha de Deus”. 

Paulo conclui seu discurso sobre predestinação dizendo “Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas” (Rm 11.36). 

[...] 

Ainda por uma terceira razão fica claro que Deus não é a causa acusável do pecado e que o homem sozinho é responsável por seu pecado. Isso pode ser demonstrado por uma cuidadosa análise do significado da e da condição necessária para a responsabilidade, uma palavra que todo teólogo usa mas cujo sentido mui poucos se dão ao trabalho de pensar muito a respeito. Como o principal elemento da palavra sugere, responsabilidade refere-se à obrigação de alguém de dar uma resposta ou uma prestação de contas das suas ações a um legislador. Para ilustrar, quando em audiência de uma causa concernente a um acidente automobilístico envolvendo dois carros, o juiz tenta determinar quem é o “responsável”, isto é, de qual dos dois motoristas é a obrigação, oriunda de uma violação de trânsito, de prestar contas ao tribunal competente. Resumindo, um homem é um agente moral responsável se ele pode e é exigido a prestar contas a um legislador por toda e qualquer infração que cometa contra a lei imposta àquele pelo segundo. Ter ele livre arbítrio ou não na acepção arminiana de tal termo (a liberdade de indiferença) é irrelevante para a questão da responsabilidade. Insistir que sem livre arbítrio um homem não pode ser legalmente tido por responsável por seus pecados falha completamente na apreciação do sentido da palavra. O livre arbítrio nada tem a ver com a fixação da responsabilidade. O que torna uma pessoa “responsável” é se há sobre si um legislador que declarou que requererá que ela lhe preste contas por seus pensamentos, palavras e ações. Por isso, se o divino Legislador determinou que requereria que todo ser humano prestasse contas a ele por seus pensamentos, palavras e ações, então todo ser humano é um agente “responsável”, seja ele livre no sentido arminiano ou não. Em outras palavras, longe de a soberania de Deus tornar impossível a responsabilidade humana, é justamente pelo fato de Deus ser o seu absoluto Soberano que os homens são responsáveis diante dele. Se o Deus soberano determinou que todos os homens deverão responder a ele pelos pensamentos, palavras e ações, então essa determinação os faz responsáveis por seus pensamentos, palavras e ações. Um tratamento bíblico completo de todos os fundamentos da responsabilidade humana incluiria ainda abordagens (1) do conhecimento inato que o homem tem da lei de Deus, e (2) da doutrina do pecado original. Os homens são as causas acusáveis dos pecados que cometem se eles sabem fazer o bem mas não o fazem, ainda que incapazes de o fazer (Lc 12.47; Rm 8.7). Deus também determinou que os homens são responsáveis pelo pecado de Adão pelo princípio da cabeça representante e da imputação legal (Rm 5.12–19). Está claro que o livre arbítrio não é, em sentido algum, a pré-condição da responsabilidade para o pecado imputado, só que os homens são responsáveis diante de Deus pelo pecado de Adão, ensina Paulo. Assim, na acepção arminiana o livre arbítrio não é a pré-condição necessária de uma responsabilidade do homem por seu pecado. Um legislador é a pré-condição necessária da responsabilidade. Pela análise acima da pré-condição da responsabilidade deve ficar óbvio agora por que Deus não pode ser a causa acusável ou responsável do pecado. Os homens são responsáveis por seus pensamentos, palavras e ações porque há um Legislador sobre eles que os chamará a prestar contas (Rm 14.12). Porém, Deus não é “responsável” por seus pensamentos, palavras e ações porque não há nenhum legislador sobre ele diante de quem ele seja responsável. Contrário ao que alguns possam pensar, ele não é obrigado a guardar os Dez Mandamentos como a criatura humana o é. Os Dez Mandamentos são seus preceitos revelados para os homens. Aqueles não se aplicam a ele como a norma ética pela qual ele tem que viver. Ele não pode adorar outro Deus porque não há nenhum. Ele não pode desonrar seu pai e sua mãe porque ele não tem pai algum (nesse momento não estamos considerando a Encarnação), ele não pode matar porque toda vida é sua para fazer com ela segundo lhe aprouver, ele não pode furtar porque tudo já lhe pertence, ele não pode mentir porque sua natureza a desaprova, ele não pode cobiçar coisa alguma que não seja seu porque, de novo, tudo já é dele. E por ser o Soberano absoluto sobre o universo, ele não pode ser chamado a prestar contas por um legislador mais supremo (não há tal ser) por nada que faça ou ordene a outrem fazer. Como ele é soberano, tudo o que for que decrete e tudo o que for que faça de acordo com seu decreto eterno é correto e direito justamente porque ele é o Soberano absoluto. Ele decretou a horrível crucificação de Jesus? A Bíblia diz que sim. Então foi correto e direito o que ele fez. Ele predestinou alguns homens em Cristo antes da fundação do mundo para serem seus filhos ao mesmo tempo que pré-ordenou outros à desonra e à ira por seus pecados? A Bíblia diz que sim. Então foi correto e direito o que ele fez. Ele determinou que chamaria os homens à prestação de contas por suas transgressões contra ele? A Bíblia diz que sim. Então foi correto e direito Deus nos considerar as causas acusáveis e responsáveis de nosso pecado.

 Robert L Reymond | Teologia Sistemática

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