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Por Yuri Schein
O debate começa daquele jeito típico: alguém invoca a Confissão de Westminster como se ela fosse o Santo Graal da metafísica reformada, imune a escrutínio, clara como água cristalina. Aí aparece o "guardião da ortodoxia" e solta:
Oponente:
“Yuri, mano, acho que você erra o alvo nessa análise. Gordon Clark nunca foi ‘ocasionalista puro’. O que ele fez foi só notar semelhança de linguagem. Westminster fala em causas secundárias, Malebranche fala em ocasiões. Confundir isso com adoção do sistema malebranchiano é distorcer Clark. Além disso, Malebranche anulava agência, Clark não. Westminster preserva agência real. Cheung, sim, vai longe demais, nega agência, e aí dissolve a responsabilidade. Colocar Clark e Cheung no mesmo balaio é forçar. Westminster resolve o problema: Deus decreta tudo, mas criaturas agem de verdade e por isso são responsáveis.”
Traduzindo: Westminster é perfeita, Malebranche é o bicho-papão católico, Clark só flertou com a linguagem, e Cheung é um herege perigoso. Nada de novo sob o sol. O mesmo discurso reciclado de quem acha que repetir o mantra “causas secundárias” resolve dilemas filosóficos e exegéticos.
Minha resposta (ou melhor, a resposta que Westminster teme):
Primeiro ponto: acusar Malebranche de negar agência das criaturas é calúnia de manual. Ele nunca disse que as criaturas não agem; o que ele disse é que elas não são causas eficazes. Ou seja, elas agem como instrumentos ocasionais, mas não possuem nenhum poder ontológico de causalidade. Isso é exatamente o que qualquer teólogo reformado sério deveria dizer, se tivesse coragem de largar Aristóteles por cinco minutos.
Segundo ponto: Westminster “anos-luz” à frente de Malebranche? Piada pronta. Westminster sequer define o que são causas secundárias. Usa o termo, joga no ar, e deixa para cada um encher o balão com a metafísica que quiser: aristotélica, tomista, cartesiana ou, quem sabe, até ocasionalista. Malebranche, por outro lado, pelo menos teve a decência de fazer o trabalho sujo e sistematizar. Westminster foi uma síntese pastoral e confessional, não uma ontologia. O vácuo que ela deixa é o que gera esse debate.
Terceiro ponto: dizer que Clark “não abraçou o sistema de Malebranche” é, no mínimo, tratar Clark como um desavisado de suas próprias palavras. Como se ele tivesse tropeçado em linguagem ocasionalista e dito: “ops, foi sem querer”. Clark não era um amador confuso; era um filósofo preciso. Se ele usou linguagem ocasionalista, é porque entendeu a correspondência. Recusar isso é rebaixar o nível intelectual do próprio Clark, o que eu não estou disposto a fazer.
Quarto ponto: Vincent Cheung. Ah, esse sempre leva pedrada. Acusam-no de negar agência das criaturas, quando o que ele nega é a causalidade ontológica delas. O que é diferente. Para Cheung, Deus é a única causa metafísica real. As criaturas agem, sim, mas não como concorrentes ontológicos de Deus. Elas agem em um plano derivado, sustentado, decretado e controlado. É justamente isso que elimina qualquer dualismo de poderes. E quanto à responsabilidade humana? Ele responde de maneira bíblica e direta: Romanos 9. Deus faz o que quer com o barro. Se você acha injusto, reclame com Paulo.
Mais: Cheung não cai na armadilha de confundir “causar” com “praticar”. A Escritura é clara: Deus causa engano (Ez 14.9), endurece corações (Is 63.17), entrega homens a paixões vis (Rm 1.24-28), coloca intenções malignas nas mentes (Ap 17.17), e ainda assim o homem é responsabilizado porque age segundo a sua própria natureza (Rm 11.32). Quem inventa distinções estranhas entre “causa” e “permissão” é Aristóteles, não a Bíblia.
Westminster, nesse ponto, deixa margem para leituras frouxas, e a teologia reformada clássica muitas vezes importou epistemologia empirista e metafísica aristotélica para preencher o vazio. Cheung simplesmente não engole isso e prefere ser fiel à Escritura em toda a sua força.
Concluindo:
O problema não é Clark, nem Cheung, nem Malebranche. O problema é a covardia intelectual de quem repete Westminster como se fosse um manual de física quântica, mas nunca teve coragem de enfrentar as ambiguidades que ela mesma deixa.
Cheung é honesto. Clark foi mais ocasionalista do que seus fãs querem admitir. Malebranche foi mais bíblico do que a caricatura feita dele. Westminster, no fim das contas, é ambígua — e a ambiguidade sempre será o esconderijo dos que querem salvar as aparências.
Em resumo: a teologia reformada tem duas opções. Ou admite que o ocasionalismo é a lógica necessária da soberania absoluta de Deus, ou continua fingindo que “causas secundárias” resolvem tudo, quando na prática não passam de um espantalho aristotélico.
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