sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Ocasionalismo Reformado: Entre a Ambiguidade de Westminster e a Honestidade de Cheung



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Por Yuri Schein 

O debate começa daquele jeito típico: alguém invoca a Confissão de Westminster como se ela fosse o Santo Graal da metafísica reformada, imune a escrutínio, clara como água cristalina. Aí aparece o "guardião da ortodoxia" e solta:

Oponente:

“Yuri, mano, acho que você erra o alvo nessa análise. Gordon Clark nunca foi ‘ocasionalista puro’. O que ele fez foi só notar semelhança de linguagem. Westminster fala em causas secundárias, Malebranche fala em ocasiões. Confundir isso com adoção do sistema malebranchiano é distorcer Clark. Além disso, Malebranche anulava agência, Clark não. Westminster preserva agência real. Cheung, sim, vai longe demais, nega agência, e aí dissolve a responsabilidade. Colocar Clark e Cheung no mesmo balaio é forçar. Westminster resolve o problema: Deus decreta tudo, mas criaturas agem de verdade e por isso são responsáveis.”

Traduzindo: Westminster é perfeita, Malebranche é o bicho-papão católico, Clark só flertou com a linguagem, e Cheung é um herege perigoso. Nada de novo sob o sol. O mesmo discurso reciclado de quem acha que repetir o mantra “causas secundárias” resolve dilemas filosóficos e exegéticos.

Minha resposta (ou melhor, a resposta que Westminster teme):

Primeiro ponto: acusar Malebranche de negar agência das criaturas é calúnia de manual. Ele nunca disse que as criaturas não agem; o que ele disse é que elas não são causas eficazes. Ou seja, elas agem como instrumentos ocasionais, mas não possuem nenhum poder ontológico de causalidade. Isso é exatamente o que qualquer teólogo reformado sério deveria dizer, se tivesse coragem de largar Aristóteles por cinco minutos.

Segundo ponto: Westminster “anos-luz” à frente de Malebranche? Piada pronta. Westminster sequer define o que são causas secundárias. Usa o termo, joga no ar, e deixa para cada um encher o balão com a metafísica que quiser: aristotélica, tomista, cartesiana ou, quem sabe, até ocasionalista. Malebranche, por outro lado, pelo menos teve a decência de fazer o trabalho sujo e sistematizar. Westminster foi uma síntese pastoral e confessional, não uma ontologia. O vácuo que ela deixa é o que gera esse debate.

Terceiro ponto: dizer que Clark “não abraçou o sistema de Malebranche” é, no mínimo, tratar Clark como um desavisado de suas próprias palavras. Como se ele tivesse tropeçado em linguagem ocasionalista e dito: “ops, foi sem querer”. Clark não era um amador confuso; era um filósofo preciso. Se ele usou linguagem ocasionalista, é porque entendeu a correspondência. Recusar isso é rebaixar o nível intelectual do próprio Clark, o que eu não estou disposto a fazer.

Quarto ponto: Vincent Cheung. Ah, esse sempre leva pedrada. Acusam-no de negar agência das criaturas, quando o que ele nega é a causalidade ontológica delas. O que é diferente. Para Cheung, Deus é a única causa metafísica real. As criaturas agem, sim, mas não como concorrentes ontológicos de Deus. Elas agem em um plano derivado, sustentado, decretado e controlado. É justamente isso que elimina qualquer dualismo de poderes. E quanto à responsabilidade humana? Ele responde de maneira bíblica e direta: Romanos 9. Deus faz o que quer com o barro. Se você acha injusto, reclame com Paulo.

Mais: Cheung não cai na armadilha de confundir “causar” com “praticar”. A Escritura é clara: Deus causa engano (Ez 14.9), endurece corações (Is 63.17), entrega homens a paixões vis (Rm 1.24-28), coloca intenções malignas nas mentes (Ap 17.17), e ainda assim o homem é responsabilizado porque age segundo a sua própria natureza (Rm 11.32). Quem inventa distinções estranhas entre “causa” e “permissão” é Aristóteles, não a Bíblia.

Westminster, nesse ponto, deixa margem para leituras frouxas, e a teologia reformada clássica muitas vezes importou epistemologia empirista e metafísica aristotélica para preencher o vazio. Cheung simplesmente não engole isso e prefere ser fiel à Escritura em toda a sua força.

Concluindo:

O problema não é Clark, nem Cheung, nem Malebranche. O problema é a covardia intelectual de quem repete Westminster como se fosse um manual de física quântica, mas nunca teve coragem de enfrentar as ambiguidades que ela mesma deixa.

Cheung é honesto. Clark foi mais ocasionalista do que seus fãs querem admitir. Malebranche foi mais bíblico do que a caricatura feita dele. Westminster, no fim das contas, é ambígua — e a ambiguidade sempre será o esconderijo dos que querem salvar as aparências.

Em resumo: a teologia reformada tem duas opções. Ou admite que o ocasionalismo é a lógica necessária da soberania absoluta de Deus, ou continua fingindo que “causas secundárias” resolvem tudo, quando na prática não passam de um espantalho aristotélico.


Deus não apenas permite, ele causa


Por Yuri Schein 

Comecemos com a verdade que faz arminiano espumar e molinista correr para debaixo da cama:

“Logo, tem ele misericórdia de quem quer, e também endurece a quem lhe apraz.” (Romanos 9.18)

Pronto. Não é talvez, não é possivelmente, não é apenas permite. É “endurece a quem quer”. Paulo, coitado, se vivesse hoje, seria cancelado pelos teólogos do livre-arbítrio. A hermenêutica dos “permite” não consegue escapar do simples fato: Deus é o causador. Ele não é um velhinho passivo que deixa os homens brincarem de autodeterminação. Ele endurece. Ele tem misericórdia. Ele faz.

Mas como todo bom rebelde contra a Escritura odeia Romanos 9, vamos dar mais textos para que a consciência deles não tenha paz:

“O nosso Deus está nos céus; faz tudo o que lhe agrada.” (Salmo 115.3)

Olha que terrível. “Faz”. Não é “espera que façam”. Não é “permite que façam”. É “faz”.

“Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.” (Eclesiastes 11.5)

Todas as coisas. A linguagem bíblica não tem dó do livre-arbítrio. Se o ímpio tropeça na calçada, foi Deus quem causou. Se um bebê nasce, foi Deus quem causou. Se uma bomba explode, foi Deus quem causou. Sim, você leu certo: foi Deus.

“Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, havendo sido predestinados conforme o propósito daquele que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade.” (Efésios 1.11)

É como se Paulo tivesse prazer em esmagar a filosofia dos que tentam livrar Deus da soberania. “Todas as coisas segundo o conselho da sua vontade”. O pecado? Todas as coisas. A queda de reis? Todas as coisas. Os pensamentos do coração humano? Todas as coisas.

Agora, a parte divertida: o mito da “permissão”.

Teólogos sem coragem para confessar a soberania de Deus dizem que “Deus permite o mal”. O problema? A Bíblia nunca usa “permissão” em sentido metafísico. Permissão em linguagem bíblica é apenas uma categoria imanente, ou seja, descritiva do modo como as coisas aparecem para nós, não da realidade última da causalidade.

Exemplo: quando José é vendido pelos irmãos, ele mesmo diz: “Vós intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gn 50.20). Ele não disse: “Deus apenas permitiu e torceu para dar certo”. Ele disse: “Deus o tornou”. Deus estava por trás, como o causador.

Quando o Senhor entrega reis nas mãos de seus inimigos (Js 11.20), não é que Ele só “permitiu” com lágrimas nos olhos. O texto é claro: “porque do Senhor veio o endurecimento do seu coração”. Não existe “plano B”. Não existe “permissão metafísica”. Existe causalidade soberana.

Permissão só existe na dimensão de como os homens percebem. “Deus permitiu que eu pecasse” não significa que Deus se afastou e ficou neutro. Significa apenas que, aos meus olhos, eu me senti livre, mas, na realidade, Deus decretou, causou e sustentou cada detalhe daquele pecado – sem, contudo, pecar.

O Deus bíblico não é o gerente que assina autorizações para ver se o universo anda. Ele é o autor do roteiro, o diretor da peça e o ator principal. Nós? Marionetes conscientes, escravos de nossa própria vontade, mas sempre presos ao fio invisível da soberania absoluta.

Então, da próxima vez que alguém falar que “Deus apenas permite”, sorria com sarcasmo e responda:

— Amigo, o Deus que só permite não é o Deus da Bíblia. Esse é o ídolo que você criou para salvar o livre-arbítrio, mas não salva ninguém.

Porque o Deus verdadeiro não apenas permite.

Ele causa.