quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Liberdade Contextual

 

Este artigo é totalmente gratuito, assim como muitos dos meus livros. Se você deseja contribuir para que eu continue produzindo conteúdo de qualidade, pode fazer uma doação voluntária via Pix para a chave 51996589876 (Nubank). Sua ajuda é fundamental para manter meus projetos ativos!

Por Yuri Schein

Uma das maiores tragédias intelectuais da teologia moderna — e até mesmo de parte da escolástica calvinista — é tentar conciliar o Deus bíblico com categorias herdadas de filosofias alienígenas ao texto inspirado. Nesse processo, criaram monstros conceituais: um Deus que “permite” mas não “causa”, criaturas que seriam “autônomas” em certo nível metafísico, e uma liberdade que mais parece um deus escondido do que uma categoria lógica. O resultado é um sistema híbrido, incoerente e fraco diante da clareza cortante das Escrituras.

O ponto fundamental que precisa ser recolocado em ordem é simples: a causalidade metafísica divina é o próprio fundamento da ontologia da criatura. Se algo existe, existe porque Deus causa sua existência; se algo age, age porque Deus sustenta sua ação. Não há espaço para independência, nem mesmo mínima, nem mesmo momentânea. O ser criado não possui “ser em si mesmo” — ele é totalmente derivado, sustentado e definido pelo decreto divino

A causalidade metafísica e a ontologia da criatura

Romanos 9.6-24 é o texto que destrói toda pretensão de autonomia da criatura. Paulo não discute se a criatura tem ou não um poder causal independente. Ele corta o problema pela raiz: a criatura é barro. O barro não existe por si mesmo, não define sua própria forma, não impõe ao oleiro como será moldado. O barro é o que o oleiro decide que seja.

 “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20).

Paulo não apenas afirma a soberania de Deus em decretar destinos, mas coloca o ponto ontológico: a própria identidade da criatura, sua natureza e função, são estabelecidas pela causalidade divina. A causalidade de Deus não apenas origina eventos — ela estabelece a própria realidade do ser criado.

Romanos 11.32-36 amplia a questão: Deus encerrou todos debaixo da desobediência para usar de misericórdia para com todos. Em outras palavras, até a condição moral da criatura é causada por Deus, e isso é parte de Seu plano. Por isso Paulo conclui com aquele hino cósmico:

> “Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas. Glória, pois, a ele eternamente. Amém.” (Rm 11.36).

Se todas as coisas são dele (origem), por ele (meio causal) e para ele (fim teleológico), então não sobra espaço para uma ontologia autônoma da criatura. A criatura é totalmente dependente da causalidade divina, em seu ser, em seu agir e em seu destino.

Negar isso, ou suavizar isso, é roubar de Deus o direito intrínseco de ser o criador absoluto e rebaixá-lo ao papel de um gerente cósmico que “permite” acontecimentos em vez de causar

Liberdade contextual versus liberdade metafísica

Outro equívoco teológico comum é confundir liberdade contextual com liberdade metafísica

Liberdade contextual significa que a criatura age de acordo com sua própria natureza, desejos e circunstâncias. José agiu como irmão fiel, enquanto seus irmãos agiram como traidores. Faraó agiu como tirano obstinado. Judas agiu como traidor movido por avareza. Cada um respondeu ao seu contexto, sendo moralmente responsável por seus atos.

Mas liberdade contextual não é liberdade metafísica. Nenhum desses agentes estava fora da causalidade divina. Nenhum deles poderia, metafisicamente, agir de modo diferente do que Deus havia decretado. A diferença é clara:

Liberdade contextual: a ação é voluntária, conforme desejos e intenções reais do agente.

Liberdade metafísica: significaria uma autonomia da criatura diante de Deus, como se pudesse causar efeitos por si mesma ou escapar do decreto divino. Isso não existe

A Escritura é implacável:

“O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor.” (Pv 16.1)

“O coração do rei é como ribeiro de águas na mão do Senhor; ele o inclina para onde quer.” (Pv 21.1)

“Não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece.” (Rm 9.16).

Portanto, a liberdade da criatura é apenas contextual, nunca metafísica. E isso é bom. Pois a única liberdade metafísica possível é a de Deus, que é o ser necessário, autoexistente, absoluto. A criatura jamais terá tal liberdade sem usurpar a glória divina.

A falácia do semi-escolasticismo

Muitos calvinistas influenciados pela escolástica caem em contradição exatamente aqui. Afirmam a soberania de Deus, mas, ao tentar “salvar” uma liberdade metafísica da criatura, caem em categorias incoerentes: falam em “causas secundárias com eficiência real” ou em “concurso simultâneo” entre Deus e a criatura. Mas isso é apenas tentativa de reconciliar Aristóteles com Paulo.

Se a criatura tivesse causalidade metafísica independente, seria um segundo deus. E se a criatura tivesse liberdade metafísica, seria senhora de seu próprio destino, algo frontalmente contrário a Romanos 9 e 11. O ocasionalismo, ao contrário, mantém a distinção clara: Deus é a única causa metafísica real, e a criatura é um agente real dentro do contexto providencial.

A causalidade metafísica divina não apenas origina os eventos, mas estabelece a própria ontologia da criatura. O barro é barro porque Deus o faz barro; o vaso é vaso porque Deus o molda assim; o pecador é pecador porque Deus decretou encerrá-lo debaixo da desobediência para mostrar misericórdia. Tudo é dele, por ele e para ele.

A liberdade da criatura é apenas contextual. Dentro de seu contexto, o homem pensa, deseja, planeja, age, e é moralmente responsável. Mas essa liberdade nunca significa independência metafísica em relação a Deus. A criatura não é um segundo deus; é barro nas mãos do Oleiro.

E isso não é opressivo, mas glorioso. Porque se a criatura tivesse liberdade metafísica, a história seria caótica e o próprio decreto de Deus poderia ser frustrado. O ocasionalismo reformado, ao contrário, mostra que a realidade é perfeitamente coerente: Deus causa tudo sem forçar nada, e os agentes são reais, morais e responsáveis dentro do contexto que Ele mesmo causa e sustenta.

Pensemos primeiro na analogia do dramaturgo. Uma peça de teatro só existe porque o autor a escreveu e o diretor a conduz. As falas, os gestos, os erros, as traições e até os desastres que ocorrem em cena já estavam inscritos no roteiro. O ator pode até improvisar — mas esse improviso só é possível dentro do cenário, das palavras e da direção que lhe foram dados. José, ao dizer “não foram vocês que me enviaram para cá, mas Deus” (Gn 45.8), fala exatamente como um personagem que reconhece a mão do dramaturgo. Seus irmãos o venderam, mas a pena que escreveu a cena não estava nas mãos deles. Eles são os agentes visíveis, mas não a causa metafísica. Assim como um personagem não existe fora do romance, a criatura não possui qualquer autonomia ontológica fora do decreto divino.

Da mesma forma, a analogia do xadrez ajuda a enxergar a dinâmica entre a soberania divina e a liberdade contextual da criatura. Um grande mestre joga com um iniciante. O iniciante move suas peças “livremente”, mas todo movimento já está previsto, calculado e até induzido pelo mestre que controla o tabuleiro. O checkmate final não é resultado do acaso, mas da estratégia prévia daquele que domina o jogo. A criatura, como peão ou cavalo no tabuleiro, age de acordo com suas próprias inclinações, sem jamais escapar ao plano do Enxadrista supremo. E mesmo os erros do adversário são parte do cálculo que conduz ao resultado inevitável.

Outro exemplo: a mecânica de um relógio. As engrenagens se movem, cada uma em seu lugar, com liberdade dentro de sua estrutura. O ponteiro das horas não escolhe ser ponteiro, nem a roda dentada escolhe girar em determinada direção. E, no entanto, cada engrenagem é indispensável para o todo. Se uma roda gira para a direita ou para a esquerda, isso acontece porque o relojoeiro assim ordenou. Deus não apenas observa o movimento das engrenagens; Ele é aquele que as sustenta no ser e as faz girar em cada instante. Negar isso seria o mesmo que imaginar um relógio sem relojoeiro, uma engrenagem movendo-se do nada — um absurdo metafísico.

Essas analogias mostram que a liberdade da criatura nunca é liberdade metafísica em relação a Deus, mas apenas uma liberdade contextual, isto é, a possibilidade de agir de acordo com a natureza e o papel que lhe foram dados. O personagem pode ser vilão ou herói; o peão pode avançar uma ou duas casas; a engrenagem pode girar com mais ou menos velocidade. Mas todos esses movimentos são definidos pelo Autor, pelo Enxadrista, pelo Relojoeiro. A criatura não é ilusão — ela é real dentro da realidade que Deus lhe concedeu. Mas a sua realidade é derivada, contingente, sustentada a cada segundo pelo decreto soberano. Isso não a torna menos responsável, pelo contrário: torna-a responsável exatamente porque foi colocada por Deus em sua função específica.

E aqui vemos a beleza da frase central: “Causar não é forçar.” O dramaturgo não precisa subir ao palco para empurrar os atores; o enxadrista não precisa pegar a mão do adversário para mover a peça; o relojoeiro não precisa girar manualmente cada engrenagem. Tudo flui de maneira natural, porque a natureza da cena, da peça ou da máquina já foi estabelecida. Deus causa, não por coação, mas por decreto ontológico. Ele cria o contexto, define as regras, sustenta os agentes e garante que cada ato, até mesmo os mais malignos, cumpra o seu plano. Como Paulo afirma: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas” (Rm 11.36).

Portanto, negar a causalidade metafísica absoluta de Deus é negar a própria possibilidade de um universo ordenado. É querer um drama sem autor, um jogo sem enxadrista, um relógio sem relojoeiro. E isso não é apenas irracional — é blasfemo, porque rouba de Deus o direito soberano de ser o Senhor sobre tudo o que existe.

Podemos pensar também na analogia do arquiteto. Quando um arquiteto projeta um edifício, cada detalhe — desde os alicerces até a posição das janelas — está traçado em seus planos. Os pedreiros, engenheiros e eletricistas trabalham “livremente”, mas suas escolhas sempre permanecem dentro do espaço que o arquiteto já definiu. Se alguém resolve alterar um tijolo de lugar, essa mudança só acontece porque ainda está dentro da margem que o arquiteto previu. Do mesmo modo, Deus projetou toda a história; cada escolha humana é uma variação dentro do decreto eterno. O livre-arbítrio absoluto seria como um pedreiro improvisar um prédio inteiro sem planta — e ainda assim garantir que não desabe. É absurdo.

Outra figura útil é a do programador de software. Em um jogo de computador, os personagens se movem, atacam, interagem e até parecem tomar decisões. Mas todas essas “liberdades” estão delimitadas pelo código que o programador escreveu. Um jogador pode escolher ir para a direita em vez da esquerda, mas nunca poderá sair do ambiente virtual ou agir fora da lógica do código. Assim é a criatura diante de Deus: age, escolhe, ama, odeia, mas sempre dentro do script que o Criador decretou. Não há linhas de código fora da mente divina.

E para tornar isso ainda mais concreto, basta olhar para a história mundial. Quem teria imaginado que a execução brutal de Jesus Cristo, tramada por líderes religiosos e políticos corruptos, seria o centro da salvação eterna? Para os homens, aquilo foi traição, injustiça, violência. Para Deus, foi a obra mais gloriosa já realizada (At 4.27-28). Ou seja: os homens agiram de acordo com seus corações perversos, mas apenas porque o Enxadrista já havia traçado cada movimento do tabuleiro. Foi uma jogada que parecia derrota, mas que na verdade selou a vitória final.

Outro exemplo histórico dramático é o de Nabucodonosor em Daniel 4. Ele acreditava ser o autor da própria glória, até que Deus o humilhou, tirando-lhe o juízo e mostrando-lhe que até a sanidade de um rei é decretada pelo Altíssimo. Nabucodonosor aprendeu o que tantos teólogos modernos esquecem: “Ele faz conforme a sua vontade na milícia do céu e entre os moradores da terra; não há quem possa deter a sua mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). Aqui está a mecânica da causalidade divina: o rei escolheu orgulhar-se, mas a escolha já fazia parte do decreto de ser humilhado. Deus não precisou “forçá-lo”; apenas decretou que agisse conforme o seu próprio coração.

Em termos modernos, pensemos em algo como a Segunda Guerra Mundial. Hitler acreditava agir por sua própria vontade ao invadir nações e exterminar povos. Mas mesmo aquela escuridão monstruosa não escapava ao plano divino. Deus o sustentava no ser, permitia cada decisão, e ao mesmo tempo o condenava. O dramaturgo estava conduzindo a peça, o enxadrista calculava cada jogada, e o relógio corria conforme o relojoeiro havia ordenado. Para nós, o caos; para Deus, a execução perfeita de sua justiça e providência.

Portanto, quando dizemos que “causar não é forçar”, afirmamos que Deus não é um tirano que empurra suas criaturas contra a vontade delas. Pelo contrário: Ele as causa a agir conforme suas próprias disposições. O traidor age por traição; o santo, por fé; o vilão, por malícia; o redimido, por graça. E em tudo isso, Deus é a causa primeira, sustentando cada escolha sem precisar coagir. A liberdade contextual da criatura existe, mas sempre subordinada à liberdade absoluta do Criador.

Essa é a beleza do ocasionalismo calvinista: o mundo inteiro é palco, jogo, código, relógio e história — mas sempre escrito, programado, movido e decretado pelo Senhor. Negar isso é roubar a glória de Deus e oferecer uma caricatura filosófica em nome da “liberdade”. Mas afirmar isso é dar glória a quem realmente controla todas as coisas.


Nenhum comentário:

Postar um comentário