quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Ocasionalismo: Do Islã ao Calvinismo? Nem de longe

 

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Por Yuri Schein

É fascinante observar como, ao longo da história, a mente humana tenta escapar da rigidez da causalidade absoluta, inventando causas metafísicas que, no fim das contas, sempre acabam apontando para um só lugar: Deus. Mas nem todos chegaram lá da mesma forma — e, se você não prestar atenção, pode acabar confundindo Al-Ghazali com Malebranche ou Edwards. Vamos destrinchar essa jornada filosófica e teológica com a atenção que ela merece.

Al-Ghazali e o ocasionalismo islâmico

Al-Ghazali (1058–1111), o grande teólogo e filósofo persa, é frequentemente citado como o primeiro ocasionalista da história. Mas atenção: o seu ocasionalismo ainda estava longe da pureza cartesiana de Malebranche.

Para Al-Ghazali, o mundo é uma tapeçaria em que Deus puxa os fios de cada acontecimento — mas, e isso é crucial, Ele não necessariamente atua sozinho. Segundo a escola axarita, à qual pertencia, a causa metafísica de certos efeitos poderia ser um anjo ou outro agente espiritual atuando sob a vontade de Alá (Stanford Encyclopedia of Philosophy, “Al-Ghazali”).

Isso significa que, em sua visão, a causalidade ainda era plural: o espiritual podia influenciar o material, e Deus delegava parte dessa ação a intermediários. Aqui percebemos um traço “pagão”: não é Deus sozinho operando em cada instante; há, ainda que subordinados, agentes metafísicos em jogo. Al-Ghazali rompe com o determinismo naturalista, mas não se afasta completamente da ideia de intermediários espirituais. Em outras palavras, se você acha que Al-Ghazali é Malebranche, recomendo olhar de novo: ele ainda mantém resquícios de um pensamento animista.

Malebranche: Deus como Única Causa Real

Avancemos para o século XVII e encontramos Nicolas Malebranche (1638–1715), o mestre francês do ocasionalismo cartesiano. Aqui, finalmente, o conceito toma forma rigorosa: Deus é a única causa verdadeira. Ponto. Nem anjos, nem forças ocultas, nem os corpos interagindo por conta própria. Tudo é ocasião para a ação divina.

Malebranche vai além: afirma que a interação entre mente e corpo não é direta. Se você move o braço, não é o seu cérebro que o faz: é Deus intervindo, usando seu ato mental como ocasião. Ele descreve essa relação como a famosa frase “Deus é a habitação dos espíritos”. É um salto metafísico monumental: a causalidade não é mais dispersa, não há intermediários espirituais independentes; há apenas Deus em ação contínua (Stanford Encyclopedia of Philosophy, “Malebranche”).

O sarcasmo aqui se impõe: enquanto Al-Ghazali ainda podia culpar o anjo, Malebranche não admite desculpas. Quer mover algo? Peça licença diretamente ao Criador. Isso não é pessimismo, é consistência teológica radical.

Jonathan Edwards e o ocasionalismo calvinista

Chegamos ao século XVIII e encontramos o calvinista Jonathan Edwards (1703–1758), que leva o ocasionalismo a um patamar quase litúrgico. Para Edwards, Deus não é apenas a única causa real: Ele é a causa contínua de toda existência, momento a momento. Nada existe que não dependa absolutamente da vontade divina.

Edwards sistematiza essa visão dentro do calvinismo supralapsariano: a criação contínua não é apenas um ato inicial, mas um fluxo perpétuo de manutenção divina. Ele nega, de forma absoluta, qualquer causalidade real dos seres criados. O universo não é um sistema de engrenagens autônomas; é um palco em que Deus atua diretamente, e as criaturas são atores cuja agência é ocasional e contingente (Cambridge Journal of Theology, “On the Orthodoxy of Jonathan Edwards”).

Aqui o sarcasmo se repete, mas de forma calvinista: se você acha que pode causar algo por conta própria, Edwards sugere que reconsidere suas convicções. Toda iniciativa que você acredita ter é, na verdade, uma ocasião para a ação divina. É bonito, coerente e assustador.

Vincent Cheung e o ocasionalismo “contemporâneo”

Vincent Cheung, filósofo cristão contemporâneo e teólogo calvinista, surge como uma voz que une o rigor de Edwards à clareza exegética do calvinismo moderno. Para Cheung, o ocasionalismo não é apenas uma abstração metafísica ou um exercício acadêmico: é a lente necessária para compreender toda a relação entre Deus e a criação.

Diferente de Malebranche, que precisava de justificativas cartesiana-metafísicas para a intervenção divina, Cheung encara o ocasionalismo de maneira mais direta: toda causa aparente no mundo é literalmente uma ocasião para a ação divina, ponto final. Não há espaço para animações espirituais como em Al-Ghazali, nem para complexidades cartesiano-científicas como em Malebranche.

Em relação a Edwards, Cheung mantém a ideia de causalidade contínua, mas acrescenta uma nuance epistemológica importante: os sentidos humanos e a experiência não fornecem conhecimento por si mesmos, mas servem como ocasiões divinas para recordar ou descobrir verdades já estabelecidas por Deus. Isso eleva o ocasionalismo a uma ferramenta de epistemologia teológica, não apenas de metafísica.

Se você acha que experimenta algo por conta própria, Cheung estaria pronto para dizer: “Parabéns! Você acabou de se tornar uma ocasião para Deus lembrar você de que não sabe nada de fato”. Aqui, o ocasionalismo deixa de ser apenas teoria da causalidade e se torna filosofia prática, ética e teológica — exatamente como Edwards já havia sinalizado, mas com maior clareza pressuposicional e rigor lógico.

Vincent Cheung também não tem medo de ofender a tradição ou pessoas apegadas aos termos teológicos mais batidos, ele defende que Deus é autor Metafísico do pecado abertamente, mas que não é o pecador, e que uma definição precisa ser feita sobre o termo autoria, isso faz com que ele de um passo mais adiante do que Edwards.

Cheung leva o ocasionalismo ao século XXI com uma abordagem dupla: metafísica rigorosa e aplicação epistemológica e ética. Ele não apenas confirma a linha de Edwards, mas a reforça contra qualquer tentativa moderna de “salvar a autonomia humana” ou validar causalidade independente. Se Malebranche fazia você se sentir dependente de Deus de vez em quando, Cheung garante que você não é nada sem Ele — epistemologicamente, moralmente e ontologicamente.

O contraste fica evidente: de Al-Ghazali, com seus intermediários espirituais, a Cheung, com sua centralização absoluta em Deus e aplicação prática, vemos a história do ocasionalismo como uma escalada implacável rumo à soberania total de Deus sobre toda causa e ocasião.

Comparando Al-Ghazali, Malebranche, Edwards e Vincent Cheung

O contraste não poderia ser mais claro: de Al-Ghazali a Cheung, a tendência é centralização da causalidade em Deus, eliminando intermediários e fortalecendo a ideia de ocasionalismo absoluto.

Reflexão

O que aprendemos com essa jornada histórica? Primeiro, que o ocasionalismo não é uma invenção homogênea: ele evolui culturalmente, de soluções “pluralistas” e intermediárias no Islã clássico, para o determinismo monoteísta absoluto do cristianismo calvinista. Segundo, que cada autor carrega consigo uma visão de mundo própria: Al-Ghazali mantém resquícios espirituais animistas, Malebranche radicaliza a intervenção divina, e Edwards transforma o conceito em teologia sistemática, aplicável à vida, à providência e à ética, porém em Vincent Cheung o Ocasionalismo se torna mais consistente.

No fim, a lição é clara: a causalidade que vemos é apenas a superfície, a ocasião; a causa verdadeira sempre aponta para Deus. E se você ainda acha que move algo sozinho, bem… prepare-se para se surpreender.


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