Yuri Schein
O calvinista que realmente lê Calvino com atenção percebe que o reformador genebrino já falava, em outras palavras, aquilo que hoje chamamos de ocasionalismo. Claro, Calvino não desenvolveu um tratado filosófico com esse rótulo, mas as suas afirmações são de uma contundência que destrói por dentro a noção de “causa secundária” como agente eficaz.
Veja a célebre passagem das Institutas:
“Aliás, de fato nem um mínimo sequer nos aproveitaria abundância de pão, a não ser que o alimento se nos convertesse divinamente” (Institutas, III, 3, p. 372).
Se o pão tivesse em si mesmo a capacidade de nutrir, então a abundância de pão garantiria automaticamente saúde e vigor. Mas Calvino observa o contrário: o pão não faz nada. Ele não tem um poder intrínseco, não contém um “ser causal” que age sobre o corpo humano. O que acontece é que Deus, a cada instante, converte o pão em alimento verdadeiro. Não há “natureza” autônoma no pão, mas uma decisão divina que o torna eficaz ou não.
Calvino repete o mesmo princípio em seu comentário sobre Daniel 1:
“...não é a qualidade inerente dessa ou daquela comida que nos sustenta, e, sim, a bênção de Deus, segundo bem lhe parecer. Pois às vezes notamos os filhos dos ricos magros e fracos, mesmo quando são bem cuidados... e, no entanto, crianças pobres, alimentando-se de ervas ruins, florescem fortes e saudáveis. Isso, pois, deve também ser observado nas palavras de Daniel.”
A lógica é implacável: a “propriedade” da comida é irrelevante. O sustento, a força, a vida — tudo isso não decorre do objeto físico, mas do ato imediato de Deus. O pão, a carne, os vegetais não são agentes; eles são ocasiões para a causalidade divina.
Isso é precisamente o que o ocasionalismo afirma: não há uma segunda camada de poder causal, autônoma ou independente, nas coisas criadas. Elas são instrumentos passivos, como um pincel nas mãos do pintor. O pintor é Deus; o pincel, a criatura.
O calvinista, portanto, já é um ocasionalista incipiente, queira ou não. Pois ao confessar com Calvino que “nem um mínimo sequer nos aproveitaria abundância de pão” sem a ação divina, ele admite que causas secundárias não têm eficácia real.
De fato, o ocasionalismo é apenas o calvinismo levado às últimas consequências. A doutrina da providência não se satisfaz em dizer que Deus “concursa” com causas secundárias (como supôs Tomás de Aquino, ainda preso ao esquema aristotélico). O Deus de Calvino não é sócio minoritário de sua criação; Ele é o único agente real, sustentando, movendo e causando tudo, de cada respiração a cada batida do coração.
Assim, quando o calvinista ora pelo pão de cada dia, ele implicitamente reconhece: não é o pão que alimenta, é Deus que alimenta por meio do pão. Isso não é apenas devoção piedosa, mas metafísica reformada.
Portanto, a conclusão é simples: se você é calvinista, já é um ocasionalista em germe. A diferença é que alguns, como Jonathan Edwards e, ouso dizer, eu mesmo, levamos a semente até a sua maturidade.
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