Por Yuri Schein
I. A confusão moderna sobre o termo “ocasião”
Entre os inúmeros equívocos filosóficos que a era moderna legou à teologia, poucos são tão persistentes e destrutivos quanto a confusão em torno do termo Ocasionalismo.
A palavra “ocasião”, quando ouvida por ouvidos modernos, é logo associada ao acaso, ao imprevisto, ao evento fortuito — como se o universo fosse um campo de coincidências, e Deus, um oportunista metafísico que aproveita brechas do acaso para inserir Seu poder.
Nada poderia estar mais distante da verdade.
O Ocasionalismo, em sua acepção filosófica e teológica clássica, não é uma doutrina sobre o acaso, mas sobre a necessidade absoluta da causalidade divina. Ele não afirma que Deus “usa” as ocasiões, mas que as ocasiões existem somente porque Deus as faz existir, e nelas manifesta Sua ação. O erro vulgar nasce justamente quando se toma “ocasião” como “contingência imprevisível”, e não como momento de manifestação ordenada da vontade eterna de Deus.
Para o ocasionalista, o cosmos não é uma sequência autônoma de causas naturais; é uma tessitura contínua da ação divina, um teatro sustentado a cada instante pelo Criador. O que chamamos de “causa e efeito” são apenas signos secundários de uma causalidade primeira e absoluta que jamais se interrompe.
II. A essência do Ocasionalismo: Deus como única causa eficiente
Historicamente, o Ocasionalismo surge como resposta ao dilema da causalidade mecânica do cartesianismo. Malebranche, seu principal formulador, percebeu que se Deus é o Criador de toda substância, então não pode haver causalidade verdadeira nas criaturas. Nenhum ser finito possui poder de produzir efeitos — só Deus o possui.
O mundo criado não é um conjunto de engrenagens autossuficientes, mas a ocasião (no sentido de cenário ontológico) pela qual Deus exerce Sua vontade continuamente.
Quando duas pedras colidem, não é o impacto físico que produz o som, mas Deus quem causa, nesse contexto, o fenômeno sonoro.
Quando uma mão escreve, não são os músculos que movem a pena, mas Deus que, através da configuração do corpo, da vontade e do mundo, produz a escrita.
Quando uma alma pensa, não é o cérebro que gera ideias, mas Deus que, usando o cérebro como ocasião, cria o pensamento.
Essa visão é radicalmente teocêntrica.
Ela retira de todo o universo qualquer pretensão de independência ontológica.
O Ocasionalismo é, portanto, a negação absoluta da autonomia criada.
É a afirmação de que não há causalidade fora de Deus, e de que a regularidade das leis naturais é apenas o reflexo constante da fidelidade divina em repetir Seus atos conforme uma ordem inteligível.
III. O Ocasionalismo e a falsa ideia de “Deus oportunista”
A má leitura dessa doutrina ocorre quando se imagina que Deus age “em resposta” aos eventos criados, como se as criaturas primeiro estabelecessem um contexto e, depois, Deus “decidisse” o que fazer a partir dele.
Mas o verdadeiro Ocasionalismo não reconhece nenhum tipo de precedência da criatura sobre o Criador.
Não há “evento” que sirva de oportunidade para Deus — há somente Deus, e os eventos são apenas modos sucessivos pelos quais Ele manifesta Sua vontade eterna no tempo.
A noção de um “Deus oportunista” supõe que algo fora dEle determine a ocasião de Sua ação.
Isso é impossível, pois seria afirmar que a criação possui poder de condicionar o Criador.
A ocasião, portanto, não é uma circunstância independente que Deus aproveita; é um estado do mundo que Ele mesmo causa, simultaneamente com o efeito subsequente.
A ocasião é o teatro, o efeito é o drama, e Deus é o único Autor, Diretor e Ator que faz tudo existir de uma só vez.
IV. Ocasionalismo e dependência ontológica absoluta
O ponto mais elevado da doutrina é o reconhecimento de que o universo inteiro é ontologicamente dependente.
Nada existe em virtude própria.
Nenhuma força, energia, partícula, vontade ou ideia tem poder inerente.
Tudo o que é, é sustentado. Tudo o que age, age porque é movido. Tudo o que move, move porque é movido por Deus.
Essa compreensão dissolve a ilusão moderna de causalidade natural.
A ciência descreve regularidades, mas não explica o porquê da sua constância.
Ocasionalismo é, portanto, a metafísica que dá fundamento racional à estabilidade da natureza: o mundo é previsível porque Deus é fiel.
A regularidade das leis naturais é o hábito divino de agir de forma coerente com Sua própria vontade.
O fogo que queima, a semente que germina, o corpo que cai — tudo isso é Deus sendo coerente consigo mesmo.
A natureza é o costume de Deus.
V. Liberdade humana e causalidade divina
A objeção mais antiga ao Ocasionalismo é a de que ele anularia a liberdade humana.
Se Deus causa tudo, inclusive minhas escolhas, onde está minha responsabilidade?
Mas essa objeção se baseia numa compreensão mecanicista da vontade.
O homem é livre não porque é autônomo, mas porque é um ser racional cuja vontade é o meio pelo qual Deus opera Sua moralidade no mundo.
A liberdade humana é real dentro da ordem ocasionalista, mas é uma liberdade dependente, não autárquica.
O homem quer, e Deus faz com que o querer seja realizado conforme Sua providência.
A responsabilidade moral não nasce da independência causal, mas da intencionalidade consciente.
Sou responsável porque penso, desejo e ajo de acordo com minhas deliberações — mas o poder de agir e o resultado da ação são efeitos da causalidade divina.
Em suma:
Deus é causa do ato; o homem é sujeito do ato.
Deus é o agente eficiente; o homem é o meio consciente.
Ocasionalismo não destrói a liberdade, apenas a coloca em seu lugar — debaixo da soberania de Deus.
VI. Ocasionalismo e a oração
Se toda causalidade é divina, a oração não é um pedido para que Deus “intervenha”, mas um ato de reconhecimento de que Ele já intervém sempre.
Orar é alinhar-se à consciência de que nada ocorre fora da vontade divina.
Não se ora para convencer Deus, mas para conformar a alma à ação que Ele já realiza.
O homem ora porque o próprio Deus o move a orar, e a oração é o meio pelo qual Deus cumpre o que decretou desde a eternidade.
Assim, no Ocasionalismo, a oração é ao mesmo tempo ato humano e efeito divino, um duplo movimento onde Deus é causa tanto do querer quanto do realizar (Fp 2:13).
Cada súplica é já uma expressão do decreto.
Cada amém é eco da vontade eterna.
VII. Ocasionalismo, milagre e ordem natural
Se Deus é a única causa, então não existe natureza independente d’Ele.
O que chamamos de “natureza” é apenas o padrão ordinário da ação divina.
O milagre, por sua vez, é o ato extraordinário de Deus fora desse padrão habitual.
Mas em ambos os casos, a causa é a mesma — Deus.
A diferença é apenas de regularidade, não de essência.
Quando o mar se abre ou o sol se detém, Deus não “viola” as leis naturais; Ele apenas age de modo não costumeiro.
Portanto, o milagre é tão racional quanto a regularidade.
Ambos são coerentes dentro da metafísica ocasionalista, porque o mesmo Deus que sustenta as leis pode suspendê-las conforme Seus propósitos.
O mundo, então, não é uma máquina rígida, mas um organismo obediente.
Não é uma engrenagem de ferro, mas um tecido maleável que responde instantaneamente à vontade do Criador.
VIII. Ocasionalismo e a presença divina no cotidiano
Uma das belezas esquecidas dessa doutrina é a sua dimensão existencial.
Se Deus é quem causa tudo, então tudo é lugar da presença divina.
Não há profano, pois o próprio respirar é milagre.
O que chamamos de coincidência é, na verdade, a coreografia invisível de Deus.
Cada encontro, cada perda, cada dor, cada alegria — são modos de Sua vontade se manifestar no tempo.
O Ocasionalismo, longe de afastar Deus do mundo, O traz de volta à vida ordinária.
Ele converte o universo inteiro em liturgia.
Cada átomo é sacerdote; cada evento é sacramento.
Nada acontece em vão, porque nada acontece fora da causa suprema.
Assim, viver se torna um ato de adoração permanente: existir é ser sustentado por Deus.
IX. Ocasionalismo e a refutação da autonomia secular
A modernidade ergueu seu altar à causalidade natural.
Fez da natureza um deus autônomo e do homem um pequeno criador dentro dela.
Mas o Ocasionalismo destrói essa idolatria com um único golpe lógico:
se Deus é o único Ser necessário, então tudo o mais é contingente e dependente.
Logo, o “autônomo” é apenas uma aparência, e a “lei natural” é apenas a expressão constante da vontade divina.
Essa compreensão é mais coerente que o mecanicismo ateu.
Pois o mecanicismo, ao negar a causalidade divina, não explica a origem da causalidade criada.
De onde vem o poder causal da matéria?
Como a energia inanimada sabe o que deve fazer?
O naturalismo afirma leis, mas não pode justificar por que elas existem nem por que são constantes.
Somente o Ocasionalismo oferece uma base inteligível: há ordem porque há Deus; há causalidade porque há Causa Primeira; há mundo porque há Vontade.
O homem moderno, ao negar o Ocasionalismo, nega também o próprio fundamento da ciência.
Porque toda regularidade observável é uma confissão involuntária de que o universo é racional — e nada é racional sem Razão.
X. Implicações espirituais e éticas
Se Deus causa tudo, então não há espaço para o orgulho.
Toda virtude, todo talento, toda força é dom.
O Ocasionalismo destrói a soberba intelectual, moral e espiritual.
A humildade se torna não apenas virtude, mas descrição ontológica: somos dependência viva.
Até mesmo o ato de crer é efeito da graça que crê em nós.
Essa doutrina também revoluciona a ética.
Pois se Deus opera em todas as coisas, cada ato humano adquire significado cósmico.
O bem que fazemos é Deus agindo por nós; o mal que cometemos é ocasião de Sua justiça.
Nada escapa à Sua causalidade — nem a santidade dos santos nem o pecado dos ímpios.
Tudo serve ao decreto eterno.
O Ocasionalismo, portanto, é a metafísica da providência absoluta.
XI. Ocasionalismo, imanência e transcendência
Muitos temem que essa visão dissolva Deus na criação.
Mas o verdadeiro Ocasionalismo mantém um equilíbrio rigoroso:
Deus é absolutamente imanente em Sua ação e absolutamente transcendente em Sua essência.
Ele está em tudo, mas nada é Ele.
Sua presença sustenta o ser de cada coisa, mas Sua natureza permanece infinitamente distinta.
Deus é como o Sol — tudo recebe Sua luz, mas nada é o Sol.
A criação vive mergulhada na irradiação do Ser divino, e essa irradiação é o que chamamos de causalidade.
O Ocasionalismo é, pois, o ponto onde a metafísica encontra a adoração:
ver o mundo não como entidade, mas como transparência.
XII. Ocasionalismo e o sentido do tempo
Se Deus é a causa contínua de todas as coisas, o tempo não é uma linha autônoma, mas o modo pelo qual a eternidade de Deus se faz sentir no mundo criado.
Cada instante é uma nova criação.
Deus não apenas criou no princípio; Ele cria agora, de novo, perpetuamente.
A existência é um ato incessante de geração divina.
Essa é a ideia do creatio continua — o criacionismo contínuo de Jonathan Edwards, que via cada momento do tempo como nova emanação do poder criador de Deus.
O universo, portanto, não é um mecanismo deixado a girar.
Ele é uma respiração constante do Ser absoluto.
A cada segundo, o cosmos inteiro é recriado — e se Deus cessasse Sua ação por um instante, tudo se dissolveria no nada.
O tempo é o eco do eterno; o movimento é o rastro do imutável.
XIII. A beleza metafísica do Ocasionalismo
Ocasionalismo não é apenas uma doutrina lógica — é uma estética teológica.
Ele transforma o mundo em uma obra de arte viva.
Cada causa natural é pincelada de Deus; cada efeito é Seu traço no quadro da existência.
O universo, visto ocasionalmente, é poesia pura:
Deus escreve a realidade em tempo real, e o que chamamos de “leis” são apenas a métrica de Seu poema.
Há, portanto, uma dimensão devocional intrínseca nessa visão.
Ocasionalismo é o antídoto contra o niilismo.
Porque ele resgata o sentido absoluto da existência — nada é em vão, porque nada é sem Deus.
A casualidade é substituída pela providência; o absurdo, pela ordem divina; o acaso, pela intenção eterna.
O mundo deixa de ser ruído e se torna música.
XIV. Conclusão: Deus, a única Ocasião de tudo
Definir corretamente o Ocasionalismo é mais que um exercício acadêmico; é um ato de reverência intelectual.
Enquanto muitos pensam que a ocasião é o acaso, o verdadeiro filósofo cristão sabe que a ocasião é o momento da presença divina.
Deus não “usa” os acontecimentos — Ele é o fundamento dos acontecimentos.
Não há acaso onde há decreto.
Não há coincidência onde há providência.
O Ocasionalismo, portanto, é a filosofia da fé levada às últimas consequências.
É a confissão de que Deus é tudo em todos (1Co 15:28).
De que nele vivemos, nos movemos e existimos (At 17:28).
De que não há átomo rebelde, nem segundo solitário, nem causa que escape ao domínio da Causa Primeira.
Crer no Ocasionalismo é ver o universo com os olhos da fé racional:
é perceber que todo o cosmos é o gesto contínuo de um Deus que jamais deixa de agir.
Ocasionalismo não é a filosofia do acaso — é a teologia da onipresença.
Deus não é oportunista: Ele é o próprio Autor de todas as ocasiões.
E é por isso que o mundo ainda existe.
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