terça-feira, 30 de setembro de 2025

A Rebelião Epistemológica: Sofistas, O Séquito do Éden e o Mito do “Salto de Fé”


Por Yuri Schein

Diego perguntou bem: “Esse salto de fé no escuro corta a fé da verdade proposicional e poderíamos dizer que isso cai no ceticismo? Até o próprio aspecto da subjetividade... precisa estar alinhado com a objetividade da palavra?”

A resposta curta que tu já deu é implacável: sim, o “salto” do tipo kierkegaardiano quando divorciado da proposição bíblica abre as comportas para o ceticismo; se levado adiante, converte-se em irracionalismo e, pastoralmente, em desastre. Mas vamos esmiuçar isso com calma — desde os sofistas até as igrejas que hoje adoram a experiência — para que não reste nenhuma aresta.

Sofistas: os avós epistemológicos da modernidade subjetiva

Comecemos onde muitos não gostam de começar: com os sofistas. Esses charlatães eruditos do século V a.C. — Protagoras, Górgias, Hipias et caterva — não foram apenas “professores de retórica”. Eles foram epistemologicamente subversivos.

Protagoras — “o homem é a medida de todas as coisas”. Tradução: verdade = percepção subjetiva. Verdade não é algo dado por fora; é o que cada sujeito descreve.

Górgias — argumenta, em sua variante extrema, que nada existe; se existisse, não poderia ser conhecido; se conhecido, não poderia ser comunicado. (Parece retórica extrema, mas é um experimento paradoxal que aponta para o niilismo epistemológico.)

Os sofistas em geral — venderam a noção de que conhecimento era habilidade retórica, utilitária, para convencer, não para corresponder à realidade.

Consequência prática: quando a verdade vira técnica persuasiva ou sensação interior, abre-se o caminho para a subjetividade absoluta. E quando a comunidade aceita isso, culto e doutrina se transformam em palanque emocional. Os sofistas plantaram a semente: o indivíduo dá a medida. O resto da História intelectual só foi regar essa semente.

A reação socrática e a primeira defesa da proposição como critério de verdade

Sócrates e, sobretudo, Platão, responderam à sofística tentando reinstalar a verdade como correspondência. A preocupação socrática com definições (o que é Justiça? o que é Virtude?) é a insistência na proposição — na possibilidade de afirmar algo objetivo e debatível sobre a realidade.

Mas a vitória de Platão foi curta: o mundo helenístico misturou Platão e os sofistas, o cristianismo entrou em cena com uma cultura já poluída de relativismo e misticismo platônico, e aos poucos a tradição passou a conviver com duas correntes perigosas: a busca pela sabedoria objetiva e a tentação do misticismo que nega ou relativiza a proposição.

Neoplatonismo e o caminho ao apofatismo (a porta de entrada para a incognoscibilidade)

Com Plotino e, depois, com o Neoplatonismo tardio e sua ressonância em pensadores cristãos, surge uma ênfase mística: o Uno é além de ser, além da linguagem. Pseudo-Dionísio cristaliza isso na teologia apofática: só podemos dizer o que Deus não é. A consequência? Se o único modo legítimo de “falar” de Deus é pela negação, então o conhecimento positivo de Deus é diminuído.

A tradição apofática foi um remédio saudável contra idolatrias grosseiras da linguagem sobre Deus — mas, sem limites e sem crítica bíblica, degenerou em algo pródigo: retirou da crente a confiança em afirmações racionais e proposicionais sobre o Deus da Escritura.

Escolástica, analogia e o equívoco do conhecimento analógico

Na Alta Idade Média o diálogo com a filosofia levou à fórmula: nós conhecemos a Deus por analogia (Tomás) — isto é, as palavras têm algum uso análogo entre criatura e Criador, mas não um significado idêntico. Essa é a famosa analogia entis.

O problema começa quando essa analogia é examinada a minúcia lógicos:

Analogia sem univocidade → equívoco (as palavras empregadas sobre Deus e sobre criaturas não compartilham sentido genuíno) → aproximação do incognoscível.

Se tudo o que se pode dizer de Deus é análogo e, por isso, insuficiente, resta pouca firmeza proposicional. Resultado: fé que depende da experiência interior ou da “mistura” mística passa a ser aceita como superior à proposição clara.

Tu já resumiste isso com precisão clínica:

Empirismo -> teologia apofática -> conhecimento analógico -> conhecimento equívoco -> incognoscibilidade -> ceticismo -> irracionalismo -> existencialismo.

Note bem: Uma cadeia lógica. Não é mágica; é consequência.

Empirismo, Iluminismo e o papel da experiência como árbitro final

Avançando: o empirismo moderno (Locke, Hume, Bacon) trouxe a ideia de que conhecimento começa nos sentidos. Isso, conjugado aos resquícios apofáticos e à analogia escolástica, configura um cenário fatal:

Se os sentidos são a base e os sentidos não podem captar o transcendente, então o transcendente torna-se inútil para o conhecimento.

A saída para o religioso? experiência interior: algo no sujeito (sentimento, sensação, “ego espiritual”) que reivindica autoridade.

A partir daqui, o salto existencial (Kierkegaard) encontra terreno fértil. E é aí que o “salto” vira salto no escuro: quando se pede ao sujeito que confirme a veracidade de Deus por sua sensação, e não pela Palavra.

Kierkegaard: mal interpretado? Ou útil para o desvio?

Tu disseste: “Há quem diga que Kierkegaard foi mal interpretado, mas o que ele fala realmente leva a essa conclusão aí.” Perfeito. Kierkegaard faz uma crítica legítima à cristandade hipócrita, mas sua solução (salto) tem aspectos perigosos:

Valoriza a decisão existencial sobre a certeza proposicional.

Relega as proposições teológicas a coadjuvantes do “encontro subjetivo”.

Serve de verniz filosófico ao que, em termos religiosos, é mera confiança sem fundamento proposicional.

Portanto, mesmo que Kierkegaard não queira destruir a proposição, sua ênfase abre espaço para que comunidades tomem a subjetividade por critério final.

Existencialismo: a sistematização do “homem como medida” em novo verniz

Se os sofistas foram os avós, o existencialismo é o descendente moderno que institucionalizou a ideia: o ser humano dá significado. Heidegger, Sartre, etc., podem não falar de “Deus” em termos bíblicos, mas a lógica é a mesma do (neo)sofista: autonomia epistemológica do sujeito. Tradução pastoral: “Se você sente, está certo.” E a Escritura? Deixa-se de lado.

A continuação direta nas Igrejas: experiência vs. proposição

Agora a aplicação pastoral que tu já apontaste com veemência: por que, nas igrejas, há tanto louvor à irracionalidade e tanto apelo ao subjetivo? Simples:

O relativismo cultural e intelectual encontrou uma saída na religião: em vez de confronto com a proposição bíblica, vendem-se experiências.

Experiência vende, doutrina exige estudo.

O mercado religioso capitaliza sentimentos — e cria um cristianismo que é religião de sensação.

O movimento neopentecostal / carismático tem muitas expressões genuinamente piedosas, mas sem critério proposicional, a experiência torna-se árbitro final e abre espaço ao erro, ao delírio e à manipulação (psicológica e teológica).

O papel da teologia apofática e onde ela foi traída

A teologia apofática não é, por si só, heresia. Há limites. Ela é saudável quando lembra que Deus excede nossa linguagem; é perversa quando substitui a Escritura. O erro é transformar a apofasia em epistemologia positiva que impede declarações claras sobre Deus.

Presuposicionalismo, Gordon Clark e Vincent Cheung: a resposta firme

Aqui entra a nossa praia, uma resposta pressuposicional e ocasionalista.

Van Til, Gordon Clark, Vincent Cheung — insistem: toda argumentação parte de pressupostos. Se o pressuposto cristão é verdadeiro (Deus se revelou proposicionalmente), então a aparente autonomia do sujeito colapsa.

Ocasionalismo reforça a soberania divina: o evento cognitivo humano é ocasião para o agir divino; não há autonomia epistêmica do sujeito.

Resultado prático: fé = confiança nas proposições da Escritura, e toda experiência deve ser julgada por proposições autoritativas.

Essa é a defesa robusta contra sofismas: não discutir mera experiência sem antes estabelecer o critério último — a Palavra revelada.

O perigo dos discursos “mistos” — retórica + mística = manipulação

Uma estratégia cruel é misturar proposições vagas com misticismo e retórica. O fiel é tomado por emotividade enquanto a doutrina é substituída por slogans. Retórica sofisticada + linguagem apofática = doutrina líquida. Resultado: culto do emoçãoísmo.

Diagnóstico pastoral: como identificar e responder quando uma pessoa cai no “salto”

Quando te aparece um Diego que pergunta se o salto corta a proposição, segue um roteiro prático:

1. Obriga a proposição — pede que formule claramente a proposição que ele aceita (ex.: “Deus é conhecido por experiência X”).

2. Examina coerência — pergunta se essa proposição é universalizável ou se permite contradições (se for mera sensação, não resiste à crítica).

3. Aplica Escritura — compara a proposição com textos: João 17:17; 2 Co 10:5; Gênesis 3; Romanos 1.

4. Demonstra a consequência lógica — mostra a cadeia: Empirismo → … → Existencialismo.

5. Oferece alternativa — reintroduz fé proposicional: explicita o que a Escritura significa por fé; apresenta exemplos históricos de fé firme proposicional (ex.: a cristandade confessional).

Nunca cedes no método: exige proposições claras. Experiência sem proposição é fumaça.

Um ataque à molinismo? (breve, porque aparece frequentemente nesse debate)

Molinismo, na tentativa de conciliar liberdade humana plena e soberania divina, muitas vezes tenta resgatar a capacidade humana de “testemunhar” independentemente da revelação soberana. Em termos de resultado prático, isso casa bem com a cultura que exalta o sujeito como árbitro — o que pode reforçar o subjetivismo religioso.

Não vou aqui esgotar a crítica filosófica ao Molinismo, mas fica o ponto: qualquer sistema que rebaixe a revelação proposicional a acessório abre espaço para o salto irracional.

Exegese bíblica em defesa da proposição (apenas o suficiente para não ser só retórica)

Gênesis 3 — o ato do homem ao comer do fruto é fundamentalmente um ato epistemológico: o homem quer definir o bem e o mal — quer ser critério.

2 Coríntios 10:5 — o cristão leva “todo pensamento à obediência de Cristo” — eis a tarefa: submeter proposições.

João 17:17 — “a tua palavra é a verdade” — autoridade proposicional da Escritura.

Romanos 1:18-25 — a humanidade que “suprimiu a verdade” trocou a verdade proposicional por subjetividade e ídolos.

Esses textos não são rituais decorativos; são ferramentas exegéticas para confrontar a cultura da experiência sem proposição.

Prática litúrgica e catequética: como construir imunidade teológica na igreja

Não é só teoria — há decisões práticas que uma liderança fiel pode tomar:

Catequese proposicional: ensinar doutrina sistemática com clareza, memorização e aplicação.

Culto centrado na Palavra: pregação expositiva que traduza proposições bíblicas em vida.

Discernimento de experiências: qualquer experiência deve ser julgada por proposições (testes bíblicos claros).

Treinar perguntas: ensinar discípulos a perguntar “essa experiência confirma ou contradiz a proposição X da Escritura?”

Combater o mercado emocional: expor as práticas de manipulação retórica como tal; não demonizar emoções, mas subordinar emoções à verdade.

 Resposta às objeções fortes — porque o inimigo é esperto

Algumas objeções que já ouvi (e que o discípulo talvez queira levantar):

“Mas a experiência não confirma a fé?” — Sim, experiências podem corroborar, mas não são critério final. Experiência é testemunho subordinado à Escritura.

“E a santidade emocional — não é válida?” — Valida, desde que não determine doutrina. Emoção é fruto ou consequência, não sinal de verdade.

“Não podemos reduzir Deus a proposições.” — Concordo: Deus é maior. Mas negar proposições não é admirar Deus; é fugir à responsabilidade de comunicar. Proposições são o modo como Deus se faz conhecido aos homens — a Escritura as entrega.

Um alerta: a retórica dos ‘místicos’ é sedutora — prepare-se para o golpe

O que seduz não é apenas a experiência: é a linguagem. E aqui os sofistas ainda estão vivos: dominaram técnicas de persuasão e agora se alojam em púlpitos. Líderes com carisma + retórica + veto à discussão proposicional são perigosos. A igreja precisa de líderes que preferem ser chatos com doutrina do que populares com emoção.

Conclusão definitiva — o que dizer ao meu aluno Diego

Diego foi franco no questionamento. Resposta direta e pastoral: o salto, divorciado da proposição bíblica, corta a fé verdadeira e abre caminho ao ceticismo e ao irracionalismo. Kierkegaard pode ser lido com proveito crítico, mas sua ênfase existencial, sem ancoragem proposicional, é terreno fértil para a mesma mentira do Éden: o homem se fazendo medida de todas as coisas.

A fé cristã não é salto no escuro; é confiança nas declarações de Deus. Não confunda encontro com Deus com ausência de proposições. A experiência é filha e serva da Palavra, não sua mãe ou árbitro.

Então respondendo finalmente: se você está em dúvida entre “sentir” e “saber”, comece por aprender a formular. Se a experiência não admite formulação proposicional que resista ao texto bíblico e à contradição, então não é fé — é sentimentalismo. Fé proposicional traz firmeza; salto existencial, quando isolado, só traz incerteza.


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